ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Não me adianta não respirar, do outro lado da porta a vizinha bate leve, raspa, sinto-lhe o corpo encostado à madeira e a mim apetece-me escancarar tudo para que a gorda se despenque para este lado pois não desiste e insiste não há paz para os vivos quanto mais para os que se querem passar por mortos, faço-lhe a vontade e abro. Mas a gorda não cai é a puta de um chinelo só sem chinelos, calçada de ténis e de cabelo a tapar-lhe toda a cabeça, as orelhas, a testa e um pedaço do pescoço nem sei que diga agora que está aqui deve ter sede e de repente o azul que vejo em todo o lado desapareceu. Entra e ela entra devagar a roçar a moldura da porta sem tirar os olhos de mim e eu dos dela não sei se a hei-de agarrar ou ir buscar um copo de água ou fazer-lhe perguntas. Sento-me no banco do estirador e ela no sofá e depois levanta-se como se o lugar estivesse ocupado vem até mim e põe a mão sobre a folha branca, mexe nos lápis, nos pincéis, vai até à janela e abre-a, debruça-se encosta-se no parapeito a ver o rio ao longe e o outro lado, os candeeiros perfilados, as caravelas recortadas com o corvo símbolo da cidade. A noite está calma e sem vento, ponho-me ao seu lado.

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