ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Telefone. Se podes vir, não, não podes vir, que não me dá jeito, não é uma questão de jeito, sou eu que não te quero cá em casa, choraminguices, tenho mais que fazer, se já tenho outra, não é outra é a mesma de sempre, insultos, mais choraminguice, desligo. Telefone. Se lhe desligar o telefone na cara nem sabe o que me fará, desligo sem dizer nada. Telefone. Como posso eu ser tão frio, cobarde e tê-la enganado durante tantos meses, ela e outra, a outra é melhor que ela, se já lhe disse aquilo que nunca fui capaz de lhe dizer, talvez por isso nunca lhe tenha dito a palavra mágica, porque era à outra que dizía. Pouso o telemóvel. Durante algum tempo ainda ouço uns sons, depois regresso ao estirador, esqueço-me por completo. Se eu lhe tivesse dito que a de sempre é a noite alterava alguma coisa? Os monólogos são discursos insonorizados, são impermeáveis à interrupção para diálogo.
A vizinhança pergunta-me por ela, as cuscas do costume andam danadas para saber o que aconteceu, devem ter ouvido a discussão naquele dia, janelas abertas, casas pegadas, já se sabe, é o jornal da caserna. Eu sorrio, dou-lhes a salvação e não respondo, sei como contornar o sentido de comunidade que esta gente partilha de que o problema de um é o problema de todos, já moro aqui há tempo suficiente para saber como funcionam e se algumas vezes me irrita profundamente tantas perguntas pela noiva, doutras divertem-me mesmo, até já as usei para os bonecos animados. Elas e eles também já se habituaram a mim, às minhas transformações antes daquele momento curtíssimo que ninguém consegue precisar sobre a mudança do dia para a noite. Agora é dia e agora já é noite, a ponte o entardecer mas alguém sabe explicar quando?
Não sou agarrado a tralhas que me tragam recordações. Nem mesmo quando viajo sou do tipo de trazer uma miniatura de alguma coisa emblemática do sitio que visitei, basta-me o ter vivido e gozado, essa é a melhor coisa que se traz e permanece, não se parte quando cai nem se arruma na cave por não fazer parte da decoração nova da sala. A escova de dentes e o cravo de papel vermelho estão no lixo, eram dela e se ela se foi não há razão para amontoar coisas sem préstimo. Bolas, já me chegou todas as explicações que tive de dar, ridiculo dar satisfações do que não se fez! Desembaraçado é isso, estou desembaraçado destas pendurezas. Pronto para me enlear no final do dia e fechar os olhos àquelas cores irreproduzíveis que me levam até à senhora da noite. Renascer... com as dores do próprio parir.
É comum dizer-se que quando alguém se vai embora fica um vazio mas eu não sinto nada disso. Também não sinto que tenha recuperado alguma coisa perdida. Tenho a sala só para mim, a janela só para mim e o tempo para gastar como eu quiser. Talvez seja um alivio o que sinto mas nunca deixei de fazer o que sempre fiz por causa dela. Bom, havía uma coisa que eu fazía, nem sei bem como nem porquê, mas volta e meia lá me achava na necessidade de me justificar de coisas que não tinha a minima culpa e nem ligava, mas de repente começou a fazer sentido o que não tinha cabimento nenhum, a que propósito é que eu me sentía culpado do que não era? A maior parte das vezes era só para não ter que ouvir aquela ladaínha... Chateava-me também quando eu quería que fosse comigo a algum lado e ela demonstrava que aquilo não lhe interessava minimamente, uma seca, um frete. Não tenho a ilusão de ter acordado de repente e ter visto que não éramos do mesmo mundo, sempre o soube, mas não fazía mal, até me fascinava de vez em quando aquelas conversas sem pés nem cabeça. Pena que nunca me tenha explicado aquele código do bater na porta... olha, não levou a escova de dentes nem o cravo de papel vermelho.
Besta. Este é o som da última palavra que me deixaste antes de saíres disparada escada abaixo. Não me afecta, o que me deixou fodido foi deixares a porta escancarada o que para mim é uma falta de respeito. Deves achar que podes entrar e saír daqui quando te apetecer e eu hei-de estar à tua espera para te aguentar os humores. De uma certa forma até foi bom, melhor: esclarecedora, porque a partir daqui ía ser uma seca e eu não tenho estomago para isso, esta foi uma boa altura para cada um ir à sua vida. Tu à procura de quem te diga aquela coisa e eu de ter um pouco de paz quanto à pressão para dizer aquela coisa. Mas já disse e repito, não me arrependo nada, nada de termos estado juntos. Gastou-se. Como todas as relações, todas as relações se gastam, mesmo que digam que há amores para toda a vida, isso é conversa. Pronto, agora tenho muito trabalho para fazer e como tenho tempo para fazer os bonecos animados como tu lhes chamavas, também vão ter tempo para viver a sua vidinha. É a vida pois. De mágico só a noite. Que eu amo.
Vens desalvorada, os saltos como pregos, o volume da voz disparado, o dedinho indicador demasiado próximo do meu nariz, do meu peito, não gosto dessas atitudes sabes bem, além de que estás na minha casa, na minha sala, acalma-te lá e diz ao que vens. Mas não, só choras, choras desalmadamente, mas que coisa, pára com isso, assoa-te, queres água, chá, um copo de vinho acalma, mas não, não queres nada, ou melhor queres que te diga o que não te vou dizer, insinuas que te devo pedir para voltarmos, que te diga aquela coisa. Voltarmos? Mas deixámos de estar? Chamas-me estúpido, estúpida és tu e mimada, não vou discutir, não te vou dar cobertura às merdas que fazes e depois não sabes aguentar e baixa a voz ou terei de fechar a janela, já se ouve os teus gritos no Tejo. Mais choro. Não dá. Vou-me embora e não volto mais, agora ameaças? Se o dizes... Agarras-te à maçaneta da porta, devagar, esperas que te impeça, toma que isto é teu, mas o que é isto? a tua escova de dentes e um cravo de papel que tenho aqui desde o Stº António para te dar. Noite, noite, noite, vem depressa, depressa que preciso de ti!
Essa voz muito fraquinha ao telefone não combina nada contigo, não te faças de doente, apalpas terreno, nem sei bem o que esperas de mim, será perdão? mas porquê? tenho de perdoar alguma coisa? não me parece, mas também não deves esperar que eu te diga volta, porque tu sabes onde estou, a porta está aberta para ti e isto não é nenhum estabelecimento com hora de entrada e saída e muito menos um contrato com obrigação de assiduidade, vens quando te apetecer. Se. Te apetecer. Vais dizendo umas coisas que eu nem percebo, a falar tão baixinho e a choramingar ao mesmo tempo é dificil entender as tuas palavras e a verdade é que já sabes que eu não gosto muito de telefonemas, ainda mais quando a maior parte do tempo só te ouço a suspirar e a fungar, queres falar aparece, queres dar um recado liga. Como fico sem saber se é uma coisa ou outra isto é uma perda de tempo. E ainda mais inutil quando repentinamente mudas o tom de voz para o ataque e para ameaças quando te apercebes que não te vou pedir seja o que for. Não tenho paciência para isto. Desligo. Neste momento estou farto de ti.
Pois. Apetece-me mesmo dizer eu sabía mas como não adianta nada não digo. Mas posso mostrar-me surpreendido e até irritado com o facto de te desculpares comigo para ires para a cama com outro gajo. Só espero que tenha valido a pena, porque se a tua consciência te dói agora dessa maneira sem teres tirado gozo nenhum, grande azar. Agora... não posso compreender nem aceitar que digas que essa vontade te foi obrigada por mim. Por mim??? Não sabes quando queres, quando te apetece, quando tens tesão?! É que esse argumento esfarrapado de que eu é que sou o culpado porque sou ausente, porque sou distante, porque nunca te digo que te amo (pronto, já disse a maldita palavra!) é coisa de mulher que não sabe aguentar o mal-estar e procura o exorcismo na culpa alheia! Fazes-me lembrar as beatas que depois do pecado cometido procuram o confessionário e saiem imaculadas com três Ave-Marias. E não se fala mais nisso. Claro que hoje nem apareceste, estás envergonhada. Mas eu não tenho nada a ver com os teus remorsos nem nunca te disse que estavas proibida fosse do que fosse. Era só o que faltava! Não és minha propriedade, não te comprei nem resgatei. Hoje a noite vai saber-me bem, preciso que venha negra e funda.
Falas à mesma velocidade com que os saltos dos teus sapatos picam as escadas, emendo sandálias, isto não são sapatos ensinas-me tu, ok aprendi, só não percebo o motivo de tanta excitação ainda mais a seguir a um dia em que não deste as caras e nem sequer tocas no assunto, falas, falas, caramba como falas rápido, agarro-te e aperto-te contra mim, tento beijar-te, inclinas a cabeça para tráz, não me estás a ouvir, eu estou a falar, pois isso sei eu mas não estou muito interessado nessa barulheira, prefiro que me deixes ocupar a tua boca com as palavras que tenho debaixo da lingua, estás parvo, não, estou com tesão, então faz cruzes na boca, não te apetece, não é isso, então é o quê? É aqui que te calas, baixas a cabeça, libertas-te dos meus braços e de costas para mim junto ao parapeito ouço-te baixíssimo, temos de falar, fala, não penses que é fácil, eu não penso nada, aconteceu uma coisa, que coisa, uma coisa que eu não estava à espera e não a procurei, fala, no fundo foste quase tu que me empurraste, eu? É neste preciso instante que sinto que a noite grita por mim e não há parapeito que me resguarde.
Deves achar que por nada dizeres eu fico aflito, ligo, mando sms, corro à tua procura. Já devías saber que esses esquemas comigo não funcionam, não vens porque não queres, não te apetece ou não podes embora desconfie que há por aí novidade. Não me surpreende, sabía desde o inicio da nossa relação que viría a acontecer e não estou nada arrependido de me ter envolvido contigo. Até pode ser que esteja redondamente enganado mas a vantagem da minha idade é ler nos sinais antes de se tornarem uma constatação. Eu espero, sei que virás falar comigo, é uma questão de dias, imagino que a situação te há-de empurrar para um desconforto tal que te seja impossível manteres calada. Quer dizer, manteres-me a mim e a mais esse alguém que te encantou na tua escapadinha. Não há necessidade deste silêncio a um Domingo tão bonito. E a um entardecer que perdoa qualquer pecado.
Não vens, Sábado é dia de praia, nem sequer me perguntaste se eu quería ir. Na verdade era uma perda de tempo porque eu não ía mesmo, engalfinhar-me naquela gente toda deitada na areia não é o meu ideal, prefiro as gentes do meu bairro e as conversas na tasca com os mais velhos ou então tomar o eléctrico e fazer-me à Baixa, à Brasileira, tomar um café onde o café tem o gosto único de café e ler, ver, imaginar, matéria bruta para o meu trabalho. Claro que este programa para ti é uma seca, coisa de velho e se eu te perguntasse se me acompanhavas arranjavas uma desculpa qualquer para te escapares ou então à última da hora ligavas a dizer que tinha surgido um contratempo. Vês, é essas coisas que me chateiam em ti, esse favor que parece que tens que fazer-me em não me dizeres tudo directamente. Ao menos hoje, primaste pela omissão, se to referir vais insistir que me convidaste, eu é que não me lembro, sou distraído... Cheira-me que esta noite há lua. Espero que haja, espero que haja...
Se vens para continuar o discurso de ontem melhor não apareceres, não tenho pachorra, está demasiado calor, dormi mal e tenho trabalho para fazer, além de que é uma absoluta perda de tempo, tu vais sempre voltar ao mesmo assunto e à mesma necessidade de falares sobre essa coisa e eu hei-de continuar a evitar dizer a palavrinha que tanto te agrada e a mim me põe os cabelos em pé, para quê, isso adianta alguma coisa em relação a nós, à nossa relação, aos nossos momentos, torna o sexo melhor, não. É só um substantivo. Lá vens tu, as sevilhanas nos pés como castanholas, já te ouço, depois as pancadinhas na porta. De seguida falas de tudo e de nada, mexes no estirador, nos lápis, espreitas o frigorifico, regressas à sala, atiras-te ao sofá e abanas a perna traçada. Talvez te apeteça o mesmo que a mim ou não, logo descubro. Como vês não é preciso falar daquela coisa para te saber toda, é suficiente conhecer a noite antes que ela chegue.
Dá para contar as passadas, não vens naquela pressa desenfreada, antes de tocares na porta com um dedo que seja abro-te a porta, hoje não estou para ouvir o teu dedo a comunicar qualquer coisa indecifrável. Calor, queixas-te, então mas não era calor o que querías? aí o tens, engraçadinho, que é que eu disse agora para merecer o tom irónico? tu sabes, sei? sabes. E com esta deixa fico com a sensação de que vem aí dose, estou quase certo que vou ser culpado de estar calor e de ter chovido no primeiro dia da tua ida, calo-me, espero. Não tens nada para me dizer? Eu sabia! Mas não respondo, olho-te nos olhos e aguardo que prossigas, a retórica é uma arma de arremesso e eu já coloquei o escudo. Dás inicio às hostilidades falando de ti na terceira pessoa e como protagonista de uma história que tanto toca a mártir como a super-mulher, fazes perguntas e forneces as respostas, daqui a nada vou deixar de te ouvir, sei como sou, ouço-te mas as tuas palavras chegam-me da mesma forma que o teu tamborilar na minha porta. E a noite que cada vez chega mais tarde...
Entras e enches-me a sala com o mundo lá de fora, o teu, das coisas que te interessam, enches o tempo com conversa de encher e eu desde ontem que estou à espera, ainda não falaste de mim, de eu não ter ido contigo, eu conheço-te, tu não és de deixar em branco uma coisa destas sem debateres, repisares, apontares o dedinho do código Morse, culpares-me de qualquer coisa. Tu não és simplesmente simples. Mesmo que já tenha passado e eu não tenha ido e nada possa alterar esse facto. Não falaste de saudades nem me perguntaste insistentemente se senti a tua falta e mais que tudo nem sequer disseste aquela palavra nem apertaste comigo para que a refira. Estou alerta. Sabes, pareces a noite naqueles dias de Outono que chega de repente à hora do lanche...
Bates à porta como se te perseguissem, nada do Morse que me irrita, vens a fugir de umas pingas de chuva que te arruinam o penteado, é só água digo eu mas devía estar calado porque entras numas explicações técnicas sobre alisamento e caracóis de que nada concluo e se tornam um enfado que não me apetece ouvir, agarro-te, reclamas que não te ouço, quero lá saber dessa conversa, aperto-te contra mim, cheiras bem, é um cheiro quente de teres subido as escadas na pressa, queixas-te que te aperto demasiado e te amachuco a roupa, pois aperto e ainda te hei-de apertar mais até entrar em ti e nessa altura a roupa só amachuca o chão e o tapete, mais um bocadinho de fita alternando a contrariedade e os beijos, sentes-me, sinto-te, o teu cheiro está mais quente, empurras-me para o sofá, surpreendes-me e dominas-me. Não sei se é da luz do entardecer mas daqui do sofá o cravo de papel vermelho sobre o estirador parece rubro.
Os saltos, os toques na porta, abro-te a porta e uma onda inunda a minha sala, vens barulhenta, animada, bronzeada. Então, que achas, bronzeada, só isso? Que mais há para achar não sei mas vou já, já saber, falas pelos cotovelos e não te consigo acompanhar, repetes nomes de pessoas que não faço a minima quem sejam mas teimas em falar delas como se fossem visita da minha casa, estou contente de te ver mas ao mesmo tempo tenho saudades de ontem e do silêncio de estar comigo só, olho para o cravo de papel vermelho em cima do estirador e penso que foi uma idéia estúpida em ter-to guardado para te dar, que importa uma merda de papel comparada com todos os dias de festa que tiveste e que me parece foste a rainha do baile? Sento-me, isto vai durar. Para além do beijo casual da entrada não tive direito a mais nada, nem sequer a sentir-te o cheiro, estás de pé na maior oratória, gostava que de tanta excitação alguma sobrasse para o sexo que me apetece, agora, de pé, nem perguntaste como estou. Espero que a noite chegue, não se acanhe com tanto frenesim.
Guardei-te um cravo de papel vermelho, sei que achas piada a este tipo de coisas, vês lembrei-me de ti, embora esteja convicto que será pouco para aquilo que esperas para o teu regresso, talvez uma orquestra, uma cena de filme americano em que me ajoelho e te peço para passares o resto da tua vida comigo. Que grande decepção vais ter. Não há heróis, só eu, pois é, a vida é cruel. Principalmente à luz do dia em que se notam todos os defeitos.
Parece que já passou muito tempo e que tu não és mais do que uma recordação de um passado que ficou lá para trás, nebulosamente, não te consigo encaixar em nenhum período especial da minha vida, ou pelo menos que me faça dividir o tempo num antes e depois de te conhecer e ainda depois de teres ido para estas tuas mini-férias. Estou bem. A sensação que tenho é que o pior já passou mas nem sequer sei o que é a definição de pior nesta situação. Habituei-me a mim novamente como se tu te tratasses de um precalço na minha rotina e agora tenha voltado a entrar nos eixos. A vizinhança pergunta-me por ti, estranham a tua ausência, ainda mais nas festas e quase me dá vontade de rir por ver como me fazem a pergunta, não sabem muito bem como fazê-lo sem denotar alguma piedade, ela deixou o vizinho, coitado não merecía, imagino que seja isto que as cuscas comentam entre si quando estendem a roupa. Deixaste? Acho que nenhum de nós sabe. Mas para deixar alguém é preciso ter-se tido e ter, ter mesmo, só a noite, a noitinha. Pragmática.
Ouço os teus saltos na rua, apuro o ouvido, na minha cabeça imagino-te a subir as escadas e de seguida os dedos a baterem à porta naqueles toques que só tu entendes, espero, espero ainda mais, não chegas, espreito à janela não vás ter-te arrependido, ao fundo da calçada vejo uma mulher de saltos altos a afastar-se, não és tu. Vá lá saber-se porque alucinei ou porque raio a memória foi desencantar estes sons, não és tu nem deves ser nos próximos dias, aliás nem tenho muita certeza sobre a tua volta. Estou de ressaca, qualquer barulhinho vai parecer-se contigo, até regressares curo-me, enxugo o tinto de vez e recupero a minha sanidade, quem sabe quando fores mesmo, mesmo tu, nem te oiça chegar. Abeiro-me do parapeito, como é triste ver os balões a agitarem-se sem a festa. Tomara já a noite e esqueço tudo.
Noite longa, marchas a ecoarem pelas vielas, pelos becos, pelos pátios, adormeci com o som de vidros estilhaçados e gritos, amantes, putas e chulos, risos, um gato a miar à lua, não houve lua talvez por isso miasse. Fiz a noite de braço à cintura dela, mãos dadas com o sereno que a madrugada vem reclamar, cheira a despedida, porque será que a madrugada cheira sempre a despedida, embrulho-me nestas coisas sem nexo e adormeço com o cheiro do meu corpo, tão diferente do teu a maresia e a bronzeador. Quando voltares sei que me vais perguntar como foram as coisas por aqui, encolho os ombros, que queres, há coisas que não se repetem.
A vizinhança está atarefada a enfeitar a rua, do meu parapeito dou indicações, atendo aos pedidos de opinião que lá embaixo me solicitam, faço parte deste guetho do mundo em que as tradições se cumprem na alegria da união, como a sardinha a pingar e a enfedorar-me a roupa e as lembranças de outros santos a que todos assistimos e lamentamos que naquele tempo é que era. No estirador esboço os preparativos deste ano, as mulheres de seios grandes e eles de bigode fora de moda, os balões, os manjericos, coisa que te deixaría enciumada, nunca te desenhei, nunca tive vontade e não sei explicar porquê ou talvez saiba, tu não és daqui, és mais uma turista que acha graça ao povo mas amaldiçoa a calçada por te arruinar as sandálias. Ainda bem que não estás, escuso as explicações quanto aos bonecos animados e à bebedeira de tinto que me encharca até à memória as noites de luar.
Não tenho saudades. Não te sinto a falta, atravesso aquele estado de graça em que se acha ter recuperado a liberdade após o cativeiro. O passo seguinte será lembrar-te em cada objecto da minha sala partilhada, aproximar-me do parapeito e nas mãos recuperar o roçar do teu corpo contra ele enquanto atiras as vistas à rua, consigo ouvir a tua voz distintamente no eco do tempo, provavelmente suspiro. A terceira fase é dolorosamente dourada, a separação traz a memória das coisas boas, tendenciosas, acharei os teus desatinos uma graça e a insistência para que te retribuísse aquela palavra um arrependimento que não me dá sossego. É aqui que desperto da letargia poética. A realidade é que nada disto vai acontecer, eu sigo a minha vida tu a tua mas nestes dias em que o tempo é aquilo que posso fazer dele ocupo conforme me apetece os monólogos que a cabeça permite. A tua escova de dentes tem um prazo de validade, de seguida vai para o lixo. Mas há a noite recorrente que lamento profundamente que nunca tenhas entendido e isso é mesmo verdade.
Dei comigo a pensar nas eleições e na certeza que tenho que deves pertencer à larga percentagem dos que se borrifaram para o voto, não estou a ver que tivesses adiado a partida só por causa disto. Tudo o que é acto politico para ti é uma seca e só apelas ao mau nome do governo quando te vão ao bolso, sublinho que a ti e a mais uns quantos Portugueses mas tu nem ouves, queres lá saber, se tivesses ficado por cá nem sequer podería trocar impressões contigo, assistir aos resultados, haverías de agarrar o comando e na fúria do zapping desancavas o tempo que se perde em debates que não levam a lado nenhum. Talvez aproveitasse para te apalpar, dar-te uns beijos e uns apertões, ignorar as queixas sobre a roupa amachucada enquanto te encaixava a jeito nas almofadas do sofá até conquistar o teu voto de silêncio, aquele feito da respiração que se tenta controlar e se perde por completo no aflorar do sangue, do desejo, do orgasmo. Conjecturas. Certo mesmo, sem abstenção nem abstinência só o entardecer que escorre pelas paredes da minha sala.
Sabe-me muito bem ir para o estirador quando me apetece, esticar-me no sofá só para mim, beber café sem hora para isso ou simplesmente ficar a ver as modas como tu dizes, tudo coisas sem importância mas que afinal fazem a minha vida. Pormenores que aos poucos conseguiste que eu os pusesse de parte para os encher com a tua presença, as tuas coisas, o cliché das relações, concessões, ceder, eu não quero ceder nada da minha vida, só tenho esta e tu também não o deves fazer, muito menos tu que tens mais tempo para viver do que eu, eu já tenho a minha fatia para trás, pelo menos posso gabar-me disso e desse proveito fui e sou feliz. Deve ser por isso que estamos neste ponto, tu com as tuas escapadinhas sociais, eu no meu parapeito a ver as modas. É incontornável o facto de eu não ir mudar e tu também não. Talvez não voltes, não te levo a mal mas eu também não te chamo, isso é uma certeza. Mesmo sendo o sexo tão fabuloso entre nós. É hora da noite chegar, não lhe pedi que viesse mas ela quer e eu gosto por ela ter escolhido voltar sem mo prometer.
Estranho silêncio este em que consigo ouvir tudo o que é ruído da rua sem a tua voz a tentar sobrepor-se ao natural barulho. E a chuva. Pequenina é verdade, mais para refrescar o chão do que para o lavar, mas o bastante para me fazer sorrir ironicamente sobre os teus planos de escapadinha junto ao mar, parece que até o S.Pedro é meu aliado nesta piada. Não sou vingativo mas ontem deste-me cabo da cabeça e hoje é a minha vez de sentir algum gozo a imaginar-te a chamares-me nomes feios e atribuíres esta chuvinha como praga que te roguei, tivesse eu esse poder. Ainda bem que não estás nem vais estar nos próximos dias, posso recuperar algumas coisas inexplicáveis para ti e vitais para mim, nada de muito importante mas que me faz falta, encostar-me ao parapeito, olhar o rio até me doer os olhos para tentar decifrar o nome do cargueiro, ouvir a vizinha a sacudir os tapetes e principalmente tentar fixar as cores do final do dia às tiras sobre o horizonte até escorrerem de vez para a noite.
Tudo normal, não vens, nem era preciso o telefonema a avisar e muito menos a choradeira em que se transformou, as recriminações, a chantagem e especialmente a mensagem velada sobre uma futura vingançazinha. Fiquei sem perceber se fica para quando regressares ou é para ser executada durante a tua ausência e se achas que me incomodas com essas charadas em que a intenção é semear a suspeita, azar, não consegues, namorisca à vontade, não preciso de te dar carta de alforria para fazeres o que bem entendes, não és minha propriedade mas eu também não sou obrigado a corresponder-te como macho ciumento como estavas à espera. É uma chatice quando se lança o isco e depois não se aguenta quando o peixe dá aqueles esticões... Choras porque a conversa não te correu de feição, ficaste contrariada, se calhar esperavas que eu te desse uma ordem, não vais! ou então: se fores, já sabes, não te queixes... aquele mau-estar que fica suspenso e a moer. Mas o que eu dispensava mesmo, mesmo foi a última tirada do não sentes nada porque não me amas, e pronto lá vamos nós caír na banalidade, na repetição desta palavra, usas esta palavra como dinheiro e sabes que mais? Conseguiste mesmo aborrecer-me, vai, vai e goza lá os teus dias com quem quiseres e dá-me paz. Eu e a noite. Apetece-me gritar enfim sós.
Os dedinhos a tamborilarem à porta naquele Morse que eu nunca saberei o que quer dizer alertam-me para a tua chegada e vou perguntar-te porque o fazes, o que quer dizer, porque não usas a campainha, isto é um pormenor mas é uma coisa que me intriga e ao fim de tantos meses a emitires sinais destes na madeira da porta da minha casa penso que tenho direito a ser esclarecido mas não passa de uma vontade minha pois roubas-me a fala e apoderas-te do centro da minha sala, temos de conversar, ai, ai, só espero que não seja aquilo, tens de me dar uma resposta, uma resposta? mas sobre o quê? sobre os feriados, irmos para fora, outra vez? sim, outra vez, fiquei sem perceber nada ontem. Não, eu é que estou sem perceber a razão de voltarmos a este tema o que me remete de imediato para a história das pancadinhas, isto deve ser uma conversa codificada que eu não consigo decifrar, mas afinal que resposta queres tu?quero saber se queres ir comigo para fora porque se não quiseres eu vou à mesma. Pronto. Agora entendi. Claramente. Está bem. Está bem? Sim, vai, eu fico. No melhor desempenho bates a tempos certos com a unha pintada sobre o meu estirador enquanto os olhos te marejam brilhantes, mordes o lábio, enches o peito de ar, esta é de facto uma mensagem encriptada, porquê as lágrimas. Quando a noite bate nos vidros da minha janela encaro-a, precisava que ficasse a fazer-me companhia sem a luz dos candeeiros.
Adivinha, não faço idéia, vá lá adivinha, não sei, faz um esforço, por muito que te conheça só mesmo sendo um vidente para saber o que vai nessa tua cabeça mas insistes entusiasticamente e eu de braços cruzados à espera dessa grande noticia fico receoso de não a achar tão maravilhosa quanto tu a queres fazer parecer, não adivinhas? Abano a cabeça, espero, fazes render o peixe dando-me uma última oportunidade, estes joguinhos na verdade aborrecem-me, nunca tive estaleca para isto, queres contar conta senão pára lá com isso, podíamos ir para fora na semana dos feriados, não é uma boa idéia? É uma péssima idéia, é exactamente nessa altura que mais gosto da cidade, vazia, o ar fica diferente, as pessoas que ficam são as diferentes, o meu plano é ficar aqui mesmo. Do charme saltas rapidamente para as mãos nas ancas, nada do que eu digo te satisfaz, não percebo porque estamos juntos, ora essa é outra observação que deverías colocar a um vidente se bem que eu acho que estas coisas não têm de ter forçosamente uma razão, mas não digo nada, olho para ti, vejo a tua silhueta e lembras-me uma bilha de barro única feita à mão, duas asas elegantes deixando passar a luz que entra pela janela aberta da minha sala, sinto sede e quero que me sacies mas tu agarras na carteira e sais disparada. Nem me mexo de onde estou, espero pela noite para me molhar a garganta seca.
Não te respondi à pergunta que me fizeste e penso nisso agora, antes de te ouvir os saltos na escada, porque estou absolutamente convicto que a conversa irá bater na mesma tecla e tal como ontem, não te vou responder. Nunca achei que os factos que trazemos de outras relações fossem confissões que devessemos fazer com quem estamos no presente, mesmo que tu me tenhas contado de todos os gajos com quem andaste, não te censuro nem te critico, simplesmente não é a minha forma de ver as coisas e embora amues por cada vez que puxas o assunto e eu não te dê troco não me acho em vantagem por saber coisas de ti e tu não as saberes de mim, essa é a tua posição, a minha é viver e guardar, hei-de manter para o meu silêncio todas as nossas conversas, as nossas tardes e o nosso sexo sem nunca o partilhar com ninguém depois de partires. Do meu passado é assim. Vens lá, dá para ouvir os teus saltos na rua e é agora que esse som interessa. A seguir só a noite e mais nada.
Sabes que dia é hoje? Segunda, mas tenho a certeza que esta não é a resposta que devería dar, aproximas-te do estirador e desenhas uma casa, um sol e um mamarracho qualquer que verdade seja dita, o desenho não é talento que tenhas, dia da criança dizes em voz estridente com a folha acima da cabeça. Não sou capaz de mostrar emoção, as celebrações por cada dia do ano tornaram-se tão corriqueiras e fora de contexto que me aborrecem. Qual é a diferença pergunto, quase me bates, falas dos direitos das crianças e de consciência, rebato com a delinquência, fome e analfabetismo, ficas furiosa e nem percebo porquê, amachucas o papel e atira-lo fazendo pontaria à minha cabeça que devolvo com um golpe de guarda-redes, chamas-me parvo, chamo-te ingénua, chamas-me descrente, chamo-te crédula, ficas séria e perguntas se não gosto de crianças. Caíu a noite e eu nem me apercebi do crepúsculo.