ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
O que a boa comida caseira tem é que nos consola de barriga mas também de alma porque nos recorda a mesa de família. A mim traz-me azia, lembra-me o meu pai e o amor estúpido que a minha mãe e as minhas irmãs lhe tinham sem razão nenhuma, nunca gostei dele, um alivio quando a natureza cumpriu a sua função. Por isso o almoço de Natal em casa da vizinha foi um frete, uma seca, um bom peru é verdade, mas pouco fiquei a saber do que quería, também a pobre mulher não sabia nada, gosta de inventar para ir empurrando a vida e nem lhe levo a mal. Disse-me que a rapariga saiu porta fora e que chovía, desatou a correr rua abaixo, perdeu um chinelo e voltou atrás para agarrá-lo e depois sumiu-se na curva. Que não a voltou a ver por aqui e que até se dizia pela vizinhança que eu a tinha despedido por ela ser uma drogada mas já se sabe os artistas gostam dessa gente esquisita e o vizinho, eu, não fugía à regra. Pois não, tanto que tentei escapar e conseguiram prender-me à mesa de um almoço de Natal ao fim de tantos séculos e pelas razões que foram, se tu soubesses vizinha, se tu soubesses!
Acordo com o barulho de um trovão no meu peito ou uma pedrada no crâneo não sei bem qual delas ou talvez as duas coisas em simultâneo, salto da cama e ouço o meu nome, penso nela e penso que não sabía que ela sabía o meu nome. É a vizinha. Abro uma nesga da porta e ela vai tentando empurrar para espreitar cá para dentro, faço força que a mulher é possante, que horas são isto, isto são horas de almoço vizinho, um convite para o almoço de Natal, não é de cristão um homem ficar sozinho neste dia e há perú e fatias paridas, empurro e ela empurra, ficamos nisto e nas desculpas que eu não quero mas ela quer que tenho de ir e não se fala mais no assunto, que depois que a rapariga saiu daqui de casa e deixou a escada toda suja de tinta azul, o vizinho sabe, a sua modelo, a rapariga trabalha para si não é vizinho, pois claro que sei que a conversa agora interessa e já acordei e claro que estou cheio de fome, então cá o esperamos para o perú. Fecho a porta. O meu coração deixou de bater. Estou cheio de sede. Nem sabía que hoje é dia de Natal, agora percebo o gajo da tasca.
Sei por mim que quem não quer ser encontrado não o é, já desapareci por muito tempo sem dar pista onde estava e como morto era a forma como melhor quería que me achassem, não sei de que me queixo agora se ela não quer ser encontrada, deve saber que a quero, sabe que não me quer. Tenho de parar com isto, com esta loucura e esta fome há-de passar, tudo passa e tudo se esquece. Com a janela aberta e a noite a entrar, devagar, devagarinho a encher a sala e os meus pulmões e as minhas lembranças sinto os tectos a ruír com os sons das vozes que tagarelam sozinhos por aqui à espera da minha resposta, quantos, quantas perguntas e quantos pedidos e eu mudo de língua encostada ao céu da boca e cotovelos no parapeito à espera do embate do azul veludo e da porta a fechar-se estrondosamente na fúria do adeus, depois os saltos na escada de madeira e finalmente a descida repicada a travar a calçada escorregadia, por vezes um olhar último à janela à espera do meu sinal doutras só a raiva a ajudar até ao fundo da rua. Mas eu, eu e sempre eu, eu sempre estive acompanhado, já a noite se instalara ao meu lado a acariciar-me e todos sons a irem-se eram o meu bem maior.
O ar da rua faz-me mal, o vinho que suja o fundo do copo raspa-me o fundo do estomago, a conversa dos velhos da tasca fazem-me esquecer o nome das palavras que quero dizer e só vem à boca o que não quero dizer, pergunto ao taberneiro se a viu, não sabe de quem falo, explico mas não quero entrar em pormenores e por isso não me liga nenhuma, só me pergunta o que me aconteceu aos óculos enfermos de adesivos para se conseguirem suster. Não lhe ligo, pede pormenores dos óculos e eu pergunto-lhe pela puta, diz que a viu passar atrás de um freguês, vazo a borra do copo e saio. Ouço a chamar-me mas não ligo, vem atrás de mim, quer dinheiro e saber o que se passa comigo e com a puta, é isto, é isto, tantos cuidados e tudo cai mal, agarra-me um braço e diz-me para ter juízo, empurro-o e não quero saber de homens que me fazem mal, subo a rua e a voz dele persegue-me pelas pedras da calçada a ecoar qualquer coisa sobre o Natal. Só a quero encontrar. Antes que a noite aconteça.
Não saio de casa. Tenho medo que ela bata à porta, que tenha sede e que eu não esteja cá para lhe dar um copo de água, para a fazer entrar de quatro, ou para lhe dar um discurso sobre a minha casa não ser o aguadeiro municipal, qualquer coisa para servir de desculpa para a fazer entrar. Quero que ela entre, só desejo que ela venha mais uma vez, uma última vez que seja. Tenho levado os dias a imaginar que ela chega e que a dispo e que consolo a minha fome. Mas não de uma forma qualquer, só nua da cintura para baixo e apenas com um chinelo e segurando o pincel embebido na tinta azul enquanto desenha no cavalete próximo da janela fechada. A janela deve imperiosamente estar fechada. A noite é ciumenta, não me deve saber a amar e se suspeita que eu o disse a ela... para quê tudo isto? Eu já estou condenado, condenei-me no instante em que o soube e em que o disse. Eu sabia, sempre o soube. Só nunca tinha sentido.
Estou cheio de frio, gelado, nem sei bem onde estou, os tectos a precisar de restauro, doem-me as costas, as pernas, mas as costas é o diabo, tenho qualquer coisa cravada nas costas, ah pois, os óculos, partidos e tinta azul por todo o lado... E Ela? Fome, tenho fome dela, que coisa esta que sinto dentro de mim que até faz mal, ela onde está? Pegadas de azul até ao quarto, casa de banho, onde se terá metido? Nada, apanhou-me a dormir e foi-se, tomou banho e foi-se, deu-me de comer e foi-se, como é que vai ser a partir de agora... era isto que eu não quería. E quando a noite chegar o que irá ser de mim, assim sem ela, a janela toda aberta a noite a entrar e eu aqui só? E esta fome a devorar-me, lenta como a noite sabe ser, envolvente como a loucura, aos poucos sem aviso, há-de sentar-se à mesa e servir-me à boca. É como se estivesse já morto.
Ela soçobra devagar e os joelhos apoiam-se nos meus ombros, quero mais, quero mar, vicio-me mas ela segura-me pelo pescoço e aperta, os olhos abertos quase perdidos no contraste do azul escuro, empurra-me, não quero, quero comer-te onde agora te comi e digo-te outra vez alto, como-te, aperta-me o pescoço e obriga-me ao chão ganhando a melhor, é ela que me penetra e que me copula, eu alimento da sua fome, ela liquido da minha sede, sinto-a por dentro, voraz, toda azul capaz de me afogar e nem sequer me importo com esta inundação que sinto e me aquece todo, quero dizer que a amo mas impede-me de falar, atravessa-me o pincel nos dentes.