ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Estou a meter a chave à porta e cucu! Surpresa, a vizinha! Ora não é tão bom termos vizinhas que estão à coca para saberem quando estamos a chegar? Uma cartinha, e vai agitando a porra da carta à frente das minhas mão como se fosse uma borboleta que não consigo apanhar, deve ser uma coisa importante, veio pela embaixada vizinho não é que eu meta o nariz nos seus assuntos mas o carteiro estava a entregar o correio e como boa vizinha e cristã que sou, já sei vizinha, agora pode entregar muito obrigado, olhe que tem um lindo selo e o meu filho até faz coleção se o vizinho, agarro a carta e enfio-me em casa, dou à chave quase que aposto que é capaz de me arrombar a porta para me sacar o selo, uma destas agora, uma carta de África. Não quero cartas de África. Olho para as pegadas azuis e sinto uma raiva enorme dentro de mim. O que eu preciso é de um copo. E da noite adentro. Seja lá do que for. Talvez a noite dentro de um copo. Bebê-la e resolver tudo.
Tive um estranho sonho esta noite acho que foi um pesadelo, logo eu que raramente sonho, dizem que todos sonham podem é não se recordar, mas eu afirmo com propriedade que não sofro dessas coisas, felizmente não me perturbo com devaneios da mente adormecida e se os tenho é porque bebi demais ou o vinho era uma zurrapa, mas esta noite sacudiram-me imagens de África e a perturbação do chamamento acordou-me de coração disparado de tal modo que nem sabía onde estava. Ela de mãos estendidas pedia-me para regressar e a pele escura brilhava recortada no contraluz dos relâmpagos deitada ao meu lado, o branco do lençol na curva da anca sobressaía com a minha mão por cima dela, eu repetia que voltava, que voltava e ela sem voz só pedia, pedia, uma coisa sem fim que se repetia até que estourou um trovão e eu acordei. Lembro-me dela com uma nitidez impressionante, cada detalhe do rosto, do corpo todo e do som da voz, do ciciar da voz quando cantarolava a lavar a louça, nunca percebi porque cantava quando lavava a louça, porque se calava num silêncio profundo e sem se escutar sequer a respiração quando nos deitávamos, era tranquila e feliz mas não sei porquê fazia-me tranquilo e imensamente triste, uma tristeza calada, profunda e interior como nunca havia conhecido. E nem as noites de lá afastavam a tristeza que se cavava cá dentro, simplesmente porque eu gostava, cada vez gostava mais. E agora sinto-me estranho, quase triste como lá.
Dela restaram pegadas secas azuis de lá para cá que tento não pisar para não as apagar, passo ao redor, já pousei o meu pé ao lado das marcas tão definidas como se fosse um padrão do próprio tapete que tivesse sido urdido na fábrica, tamanhos diferentes, o meu um pé gigante comparado com a pequenez do desenho tatuado dela, cambiantes de azul conforme foi andando e perdendo a marca. Quase parece uma carta de despedida. Um aviso. Uma lembrança a desaparecer com o passar dos tempos, de lá para cá, de cá para lá. Porque raio fui eu adormecer naquele dia e não me apercebi que ela saíu? Já passei a casa a pente fino e não há mais nada que me diga que ela passou por aqui, nem sequer um cabelo, um chinelo solitário, qualquer coisa que pudesse deitar as mãos e fechar os olhos e apertar. Se a vizinha não a tivesse visto ía dizer que estava louco, melhor que a noite chegasse durante o dia pleno e tudo estaria sossegado.
Entreguei o trabalho limpo, asseado, cirurgicamente dentro dos parâmetros do programa do cliente e com uma quinzena de atraso. O que agradou em qualidade ao cliente desagradou-o pela falta de cumprimento. Caguei. Não me deu o mínimo gozo fazer esta merda e fi-lo porque precisei do dinheiro. Querem mais. Não sei se quero, ponho alguns entraves e falo de projectos para outro cliente que não existe mas eles não desistem e oferecem mais dinheiro, digo que vou ver a agenda e que depois digo qualquer coisa, a verdade é que não me apetece fazer nada para este gajos é tudo coisa sem o mínimo interesse e a minha cabeça está cheia de riscos que preciso de fazer em murais suficientemente largos que comportem a idéia. Até lá quero que a noite me engula e que ninguém me chateie. E de preferência que não se lembrem de me telefonar, deixem-me, quero estar sozinho com os meus riscos e construír uma prisão com eles.