ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Nunca mais soube nada dela. Nem sequer por ouvir falar dela que a tivessem visto passar, sei lá, manca de um chinelo ou acompanhada no cliente a tentar servir-se da próxima dose, nada e até tentei o inquérito com a russa mas esta nunca viu tal pessoa garantiu-me. Vou traçando riscos direitos e mais direitos traços paralelos até ficar com os olhos irritados e saturado do mesmo quase acabo a encomenda antes do tempo, um frete monumental que desta vez nem sequer tem sido perturbado com telefonemas e perguntas sobre o andamento, parece que adivinham que entrei na linha ou nos traços, um a negro outro a azul e olho o tapete com a marca rija das pegadas, passo-lhe a mão. Pés ou mão quase aqui parecem o mesmo, foram o mesmo naquele dia, fomos um ou uma só palavra nunca dita por mim.
Não sei porquê mas envergonho-me da minha casa e quase me desculpo perante a russa da desarrumação e poeirada que aqui vai, vou puxando livros para um lado e enfiando pincéis dentro dos copos à medida que me admiro comigo mesmo da estupidez do meu discurso e do silêncio dela, afinal nada treme e nem sequer lhe ouço os passos, aliás ela cabe perfeitamente aqui dentro, abro a janela, sei que a noite ainda tarda a chegar mas quero ganhar espaço e arejar talvez mais aquilo que digo e espero se perca com o ruído do que se passa lá fora e ela não entenda do que a necessidade de entrar ar novo. Ela está especada a olhar para as pegadas azuis e eu vou-lhe já dizendo que não é para limpar isso aí não se toca e os tectos também não. Paixões diz ela como se estivesse a chupar um caramelo e depois aponta para o tecto. Pergunto-lhe o nome e ela responde russa, sorri com a cabecinha de lado mas diz que veio da Ucrânia e é engenheira informática mas que isso é de outros mundos e de outras vidas. Eu acho que é de outras noites porque afinal há mais do que uma e não só uma a chegar e quando aparecem surgem de diferentes maneiras e a minha chega só para mim, nem melhor nem pior do para a russa mas é só para mim que esta noite acontece. Peço à russa que comece no dia seguinte.
Encontros marcados pelo gajo do tasco e cá estou eu encostado ao balcão a contratar a russa, que o nome já ninguém lho tira. De ruça não tem nada, ainda gostava de saber que mania é esta que as mulheres agora arranjaram de pintar os cabelos de encarnado pois assim que lhe bati os olhos só me lembrava de uma cabeça de fósforo! Que diabo! Se eu tivesse pegado nas minhas tintas não a tería feito tão contrastante, a pele leitosa e a cabeça vermelha, os olhos manchados de azul e a boca tingida a rosa, um verdadeiro quadro a 3D mas em tamanho gigante que a mulher é enorme para cima e para os lados, os meus tectos, os meus tectos vão ruír quando este elefante pisar a minha casa e tudo abanar lá dentro já estou a ver a derrocada, acho que não a contrato mas o que é que eu digo, a mulher fala de uma maneira que parece que tem um caramelo na boca e sorri com a cabeça de lado e a voz é pequenina, nada a ver com o tamanho do imenso corpo que carrega. Diz-me que quer ver a casa e eu digo que sim. Eu quería dizer não porque digo que sim? Mas que merda! Vamos lá que quando lá chegarmos vou dizer que não.
Mais um projecto sem gracinha nenhuma mas que desta vez prometi a mim mesmo levar a sério para tentar despachar o mais rápido possível para evitar a merda dos telefonemas e das pressões sobre o prazo, não quero prender-me a gostos até porque se o aceitei já me prostituí logo não há como voltar atrás com repiques de moralidade quanto à sintonia com o espirito. Nunca estará em estado de harmonia comigo que me deixe uma extensão de mim e eu entenda que feito e fazedor somos um até se decepar a vontade do olhar e concluído satisfizer a vontade de outros. Novo ciclo se iniciará então. Mas não com esta bosta, esta coisa disforme de que estou incumbido são traços preenchidos a cor que outros podem chamar de projecto, ou chamo-lhe estafermo que ocupa e suja o meu estirador. Salva-me a honra quando olho para baixo e vejo azul, azul de pegadas que se dirigem pela casa fora como a noite quando entra casa dentro. Avé azul!