ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
É ela, é ela digo ao gajo da taberna e ele não liga e palita os dentes, pano ao ombro, só olha sombrio a chuva que cai como se fossem lentes que lhe tirassem a visão do que lhe passa à porta, diz que não vê nada, um dos velhos  diz que está no tempo dela e depois todos falam do tempo, não é nada disso seus fósseis é ela descalça será que não a viram? Saio disparado mas o taberneiro desata aos berros por causa da despesa e mando-o para entre pernas e devolve-me para o mesmo sitio. Mimos. É o aconchego de se viver num bairro que nos é querido. Não a vejo, não vejo nada, estou ensopado, o rio subiu a calçada e resolveu verter-se sobre mim deixando o leito seco. Logo mais quando espreitar a anunciada da noite hei-de encontrar uma cova e peixes a tentar desesperados acharem uma vida na lama. Não sei porquê assusto-me e sinto frio. A chuva pinga-me da barba. Nada que um copo não aqueça e por isso retorno ao tasco.
Dou comigo a pegar no esboço da puta vezes sem conta, demasiadas vezes, sinto-lhe prazer nas linhas hesitantes e sem treino, não o quis levar. Da maneira que lhe falei será tudo o que resta dela, nunca mais há-de voltar e no entanto sou capaz de a desenhar de olhos fechados, à medida que os dias e as horas passam há relevos na memória que se evidenciam por demais e o traço apruma-se, é como andar de bicicleta, depois de sabermos por muito tempo que passe é só uma questão de retomar o equilíbrio. Atiro com a folha para cima do trabalho para tapar o que já devía estar terminado e fecho a porta, abalo-me até ao tasco, pergunto ao dono se conhece a puta dos chinelos, nunca viu tal pessoa. Os outros velhotes também não, nem com outras descrições, falo do cabelo muito rente, nada, nada, o taberneiro diz que deve ser uma das minhas bonecadas e todos riem, não acho piada nenhuma porque sei que ela existe mesmo. Apetece-me chateá-lo por vingança, pergunto-lhe pela mulher a dias, palita os dentes e responde que não há nada, os mesmos sons das pedras de dominó batidas nos tampos de mármore das pequenas mesas irritam-me, começa a chover copiosamente e vejo-a a passar descalça em frente da porta da tasca.
Tu deves pensar que eu estou maluco para ir nessa conversa, põe-te ao largo, nem sequer te deste ao trabalho de olhares o que eu fiz e já vens com as garras de fora para me tirares a roupa e o paleio do agora eu, não, é rua, toca a vestir e rua, e podes levar o desenho. Esta gaja põe-me doido. Faz-me ferver. Não fala, veste-se e não fala, veste-se e não olha para mim, não refila por eu correr com ela. Saiu. Vejo-a descer a calçada, uma espécie de mala de trapos à tiracolo. Descalça. Onde terá deixado o outro chinelo, só vinha com um, pois deixou-o aqui, um cemitério de um chinelo só, vai descalça e vai segura isto não é um poema, parece que sim, lembra-me qualquer coisa mas não sei de quem, uma puta a descer uma calçada descalça vai segura mas não fala e não olha e não refila e também não bateu com a porta, que rapariga é esta que é puta e é drogada e que me quer pintar. Sinto-me mal. Sinto-me a ferver. Sinto-me a sentir. Espero que a noite me dê uma pancada na cara e me atordoe para me libertar disto tudo.
Agarro no bloco e no lápis e fico parado. Há quanto tempo é que eu não faço isto, acho que desde os tempos do curso, acho que já nem sei desenhar à vista sinceramente, ainda por cima um modelo vivo, se fosse uma abóbora ou uma jarra ou os florões do tecto era diferente agora uma gaja, quer dizer esta miúda assim, aqui à minha frente, toda descascada não sei. Ela está à espera, sei que está à espera, bom alguma coisa há-de saír. Já está, não, não está e fica quieta e se calhar é melhor saíres da janela senão tenho a vizinhança toda aí a bater-me à porta, só digo isto para empatar porque na verdade estou-me a borrifar para o que possam dizer. Pronto. Mostra. Não diz nada. Tem as mãos sujas. Mas não diz nada. Mas que merda, podía dizer alguma coisa, se está bem se está mal, mas nada. Agora eu. Que é que tu queres dizer com isso? Agora é a minha vez de te pintar.
Pinta-me diz ela e volta a despir-se sem me dar tempo de dizer não ou dizer está bem ou arranjar uma pose que é o que os pintores dizem às suas musas. Eu não a quero pintar porque não a quero despida na minha sala porque ela está suja e nunca será a minha musa. Nunca tive musas e nem acredito em tal parvoíce, musas são coisa de inclinação de pintor durante um tempo, uma paranóia que um gajo tem durante um período e depois passa, tusa, isso, são tusas e não musas. Eu não tenho tusa por esta miúda quero é vê-la daqui para fora. Ela põe-se em contra-luz na janela, os braços ligeiramente afastados do tronco, a cabeça quase de perfil. Só agora reparo no corte de cabelo tão cerrado que lhe delimita perfeitamente a linha do crâneo. Pinta-me diz ela. Está bem.
Ouço-a a arrastar a gordura até à minha porta, a respiração ofegante, quase sinto o cabelo colado na porta, o ouvido a tentar descortinar se estou cá dentro, estou cá dentro estou mas não estou para ti, revolta-me não ser dono do meu espaço, do meu capacho, da madeira da minha porta, do meu patamar, do ar à volta, isto é meu, xô vizinha não estou andor, querías saber o que faço cá dentro não era, mosquinha gorda. E a puta de olhos abertos, boca aberta, pé descalço no meio da minha sala e debaixo dos meus belissimos tectos, isto é inacreditável!!! Silêncio, bateu com a porta, foi-se, agora nós. Não te dispas por favor, vai-te embora, não quero nada contigo rapariga, vai-te embora e nunca mais voltes nem para água estás a ouvir. Agora veste-se mas não diz nada. Não fala. Bebe lá a água e pira-te tenho de trabalhar e não venhas cá mais. É a sério que falo. Não mexas no meu trabalho tens as mãos sujas.
Batem-me à porta, deve ser a vizinha ouvi-lhe o som monocórdico com uma outra, uma ladaínha que faz parte dos sons da rua, não ligo pode ser que se vá, estou a trabalhar, de novo, não estou, deve querer conversa para depois ter conversa com a outra para dizer que sabe tudo, mas insiste, que merda não me largam, abro a porta num rompante. Que é que tu queres, já não te disse para não vires aqui, água, mas que água isto não é o da joana, o que é que tu queres daqui, vai para casa, tem vergonha nessa cara e vai para casa. A puta dos chinelos. Sem um chinelo, a pé coxinho. Tem os pés encardidos. Sinto os passos pesados e arrastados da vizinha a começaram a subir os degraus. Parece que esfrega as solas na madeira por cada vez que poisa o sapato. Vai ser bonito. Vai haver conversa até aos Reis e não vai despegar daqui até se enfiar cá em casa. Estás a ver o que é que me arranjaste, entra depressa e nem um ai.
Desço a rua e subo a rua, vou de casa para o tasco e deste para o estirador, o trabalho corre limpo e como o quero porque faço o que gosto. Repetição de gestos. Imitação da vida. Do mais, não paro em casa a não ser para dormir, cheira a azedo, sobras do que comi e me caiu mal, o que o meu corpo rejeitou não foram os copos do esquecimento da taberna, foi uma ruiva mal digerida que comi na gula da pele, só os olhos a pensarem. Restos estragados vai-se a ver, até parece mal um trabalho bonito numa casa suja. É sempre assim, o que se espreme do que foi é quase nada, um sobe e desce que não leva a caminho nenhum ou um cheiro que ninguém deseja a lembrar a última vez.
O trabalho. O lixo. O telefonema. É tudo o mesmo. Tudo se resume ao mesmo conceito porque aquilo que eu não queria e que prevía veio a acontecer. O chato do patrão a telefonar para saber dos prazos que é a única coisa que lhe interessa e a mim interessa-me descobrir uma casa onde se consiga adquirir o material que uso e uma mulher que venha cá a casa para limpar esta pocilga e sobretudo que parem com a porra dos telefonemas. O trabalho nunca foi o projecto porque nunca gostei dele. Arruinado pela malinha da pseudo-ruiva na raiva da sua saída levou-me muitas horas dobrado sobre o estirador mas paixão nenhuma. Afinal tudo tem uma razão de acontecer, o alivio da saída dela com a libertação do trabalho com o qual nunca tive nenhuma ligação. E a descoberta dos tectos, tudo tão próximo, tudo tão distante, tudo relativo. Despacho o patrão e digo-lhe que estará pronto dentro dos prazos, não minto, tão certo como a noite sucede ao dia, vejo o meu projecto concluído como um espelho do que me resguarda a cabeça.
O mal dos reencontros é que se desfaz  muito do que se fabricou na imaginação, na minha imaginação a ruiva continuava morena e tudo prosseguía no ponto onde tinhamos ficado. Não exactamente onde tinhamos parado, porque nessa altura já ela tinha desaparecido sabe-se lá para onde porque eu não lhe dizía o que ela quería ouvir, mas devería voltar agora sequiosa e madura e sem se importar com palavras que não acrescentam nada à convivência. Afinal regressa mais exigente, mais dominadora, manipuladora e de cabeça encarnada. Só lhe deixava aquele fogo com que me entrava em casa e me amarinhava sem dar tempo a largar o estirador, encostar a janela sem se ralar com a vizinha, vinha com ela fisgada, não passavamos da ombreira da porta, bons tempos. Antes tivessemos permanecido na vontade de nos reencontrarmos sem acontecer, agora a recordação que tenho é uma bebedeira monumental. Estou bem sózinho, muito bem. A noite consolida o que o dia quebrou como uma cola imperceptível e um pouco antes dela entrar pela minha casa para reparar tudo o que me lembro hei-de apanhar os bocados que espalhei de mim antes da morena ter desaparecido da minha vida.
Aproximo o sebastião à boca e a sensação que tenho é que estou a beber de um esgoto, não aguento e vou vomitar outra vez, o taberneiro fulmina-me e berra até ao fundo esticando-me a chávena de café. Não consigo respirar. Se o fizer o balcão apara-me a miséria humana, ele ordena-me respira, respira e parece uma mulher prenhe em trabalho de parto, os braços redondos e as mãos sapudas e vermelhas a agitarem-se no ar, se não me sentisse tão mal ría, a culpa desta merda toda é daquela gaja de cabelo vermelho, por alguma razão se diz que não se deve confiar nas ruivas, porquê não sei mas sei que já ouvi ou já li isto em qualquer lugar, onde não me lembro, ainda por cima uma falsa ruiva o que é muito mais perigoso que uma loura a fingir, mas porque raio estou eu a pensar nestas porcarias todas agora se estou tão mal disposto? Olha... Afinal, já não me sinto tão mal, aliás até já estou bastante melhor, que coisa! Que é que eu bebi? Fernet branca. Branca? Aquilo era esverdinhado, acastanhado, lodoso, tens de me arranjar uma garrafa daquilo, é remédio, não é para andar a beber a torto e a direito e agora desampara o balcão que estás a espantar a freguesia e leva os óculos. Para ver a noite não preciso deles. Tenho-a por dentro.