ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
O quadro azul está pendurado na sala e ocupa um grande pedaço da parede branca e a atenção de todos os olhos. Defronte é a janela. A Russa devolveu a tela emoldurada sem palavras a desculpar-se ou qualquer outra coisa a justificar a entrega do quadro agora, porquê agora, nada, apenas chegou com um fulano e trataram da coisa sem me perguntar nada. Abro a janela e a noite está fria. Tenho a certeza que ela vai saír daquele azul para se encavalitar no parapeito e balouçar a perna. Sinto uma enorme tranquilidade no peito ou no abdómen ou no sexo não sei bem e se calhar é tudo.
Disse à Russa que se calhar o melhor é ir à policia e tentar saber noticias dela, ao menos os profissionais podiam ajudar a descobrir alguma coisa. Mas a mulher cresceu para mim e apontou para a cabeça a falar aquelas coisas que parecem agarrar-se aos dentes, não percebi de onde veio aquela exaltação toda e nem deixava falar, que eu estava maluco e batia com o dedo na cabeça  insistentemente, não não e não muitas vezes. Calei-me murcho. Depois acalmou e perguntou que ia eu dizer se não era nada nem pai nem marido nem tio nem sabia nada da mulher, deixar assim melhor para ti, passa tudo com tempo e lá trouxe os copinhos e a garrafa da beberagem. Bebi e ela esfregou a mão grande no peito dela e disse dói aqui mas passa, não passa tudo mas passa, meu filho morreu e ainda dói mas eu viva e dói. Bebi outro de uma golada e ela também com uma palavra na língua dela que me pareceu assentar bem no momento mas não faço a mínima do que queira dizer. Dói é só isso que sei mas ela também sabe.
Que será feito dela é a primeira coisa que penso mal acordo. Há gente que se queixa que quando tem um problema leva-o para a cama e sonha muito com isso. Eu não. Infelizmente. Nunca fui muito dado a sonhos ou a pesadelos mesmo que a coisa seja grave, nem sei porquê pois também já tive a minha dose e se os sonhos fossem apanágio de quem já passou por umas quantas basta lembrar-me do meu pai e do inferno em que tornou a minha vida, um santo cabrão aquele gajo. Gostava eu era de sonhar com ela, tê-la de volta mesmo que fosse no mundo dos sonhos que a realidade não me traz nada nem ela nem noticias. Um pesadelo acordado. Onde será que se meteu e porque se foi embora sem dizer nada são tudo perguntas que me martelam a cabeça e me fazem desesperar, mais que quando a vi naquele estado lastimável. Pesadelos. Para que é que eu preciso de sonhar se tenho a realidade a atormentar-me desta maneira e nem sequer vou acordar para por um fim a um mau bocado?
Faço contas de cabeça desde que se foi e refaço e volto a fazer por achar pouco tempo ou se calhar é tudo relativo porque por dentro de mim e no espaço da casa está tudo tão sozinho e desamparado como se tivesse acontecido há muito muito tempo e a ausência dela tivesse levado móveis e órgãos do meu corpo tudo junto sem distinção. Entro no quarto como o novo ano, é tudo uma questão de pé à frente do outro e nada mais porque se recuar o dia anterior não foi diferente do ano que agora é novo ou o pé direito atrás do esquerdo, na verdade se entrar ou se sair ela continua a não estar e eu estou sozinho. Faço contas de cabeça às mulheres que me deixaram e essas saídas embora sentidas verdadeiramente nunca foram abandonos porque nunca lhes disse o que não sentia nem a pedido, esta partiu e levou qualquer coisa que até hoje não sei o que é mas sei que a amo e lho disse no silêncio por várias vezes. Nunca me deixou dizer o som das palavras alto, alto forte de modo a que os tectos e os florões se rachassem mais e mais pela temeridade dos sentidos que impulsionava a minha voz nessa verdade tão nítida e pura que quase me agoniava manter dentro da boca se não falasse. Era como se a noite se atrasasse à espera de nós e só depois havia permissão para se chegar ao mundo.
 
Pior que o dia é o dia seguinte porque este tem o gosto das sobras e a claridade dos objectos recebidos. Fartei-me de receber presentes mas se estavam à espera que eu fosse oferecer alguma coisa bem podem morrer antes que isso aconteça, odeio todo este sentimentozinho de boa vontade e paz entre inimigos que teatralizam quando se amoitam na esquina para espetar a faca mal é dia novo e a troca dos presentes é mais um número de pobre diplomacia com o olho no porco. Tomara que deste mês venha muita chuva para lavar ruas e gentes estou muito farto de lixo e de mim também que podía ir na enxurrada sem se perder coisa nenhuma. Digo à Russa para levar o que quiser do que veio de ofertas mas ela enfia-se na cozinha a falar sozinha naquele idioma peganhento que ninguém entende e assim sendo está feito mais um Natal. Onde será que ela anda nestes dias totalmente encharcada um pé descalço ou os dois para a cova. Dói-me esta idéia que não me larga faz tempo e tenho medo tanto medo.
Trabalho muito trabalho daquele que não é de pensar porque é para agora porque amanhã já é outra época e já ninguém quer saber é isto que o Natal é e é isto que as pessoas são coisa de dois dias e está feito é este o meu trabalho campanhas de um par de dias que se esgotam porque parece que o mundo morre se não tiver acesso a estas porcarias. Faço o que tenho a fazer sem cabeça e sem vontade é pelo dinheiro que faço a minha campanha e é tão mercenária quanto a quadra que me pede para despachar serviço no tempo de fim de semana e ficarmos todos felizes eles com o produto eu com os tintos que hão-de marchar à conta destes serviços. Odeio esta época e o que me faz lembrar do meu pai e de mim e do perú da vizinha e dela que não está comigo. Talvez esteja em África no mesmo sitio do meu filho e nem sei porque me fui lembrar disto e tento afastar este maldito pensamento da cabeça e só a cor vermelha me salta ao plano. A noite tem estado todo o dia.
 
À medida que os dias avançam a saudade agiganta-se mas o mais curioso e triste é que também os traços das suas feições e o recorte do corpo na contraluz da janela esbatem-se como um pincel que se agita na água para diluir os restos de tinta. Faço força por me lembrar e numa contrariedade tudo parece ir-se aos poucos até mesmo o cheiro do pescoço ou do sexo quando atingia o orgasmo soluçado e silencioso somem-se das recordações visíveis e palpáveis que ainda ontem sentia e me gratificava por manter. Exijo todos os dias o retorno do meu quadro mas a Russa já me sequer me responde e eu temo que o tenha queimado para lhe acabar com a espécie. Nada restou dela e em breve até eu nem serei mais a prova de que ela existiu e fomos um só por várias vezes por vários silêncios e em vários azuis a imitarem noites quando ainda havia dia claro. Não conseguirei manter na minha memória mais que uma história que por não recordar perfeitamente hei-de inventar aos poucos como remendos que se cosem para unir o que de facto aconteceu e o que desejaria tivesse acontecido. Abro a janela e encavalito-me no parapeito como ela fazia mas ela não aparece.
Perco a vergonha e pergunto ao taberneiro se a viu não consigo aguentar mais esta incógnita dentro de mim mas o homem está de mal comigo e faz-se de desentendido que as coisas têm andado um bocado tortas da minha parte diz ele comporto-me como um garoto e já tenho idade para ter juízo, juízo que és homem e insiste na moral da questão enquanto esfrega o sebo do balcão e arranca restos com a unha mas dela não sabe nada e se soubesse também não me dizia que só quer o meu bem e ela só me leva à ruína onde já se viu um doutor como eu a andar com uma mulher da vida e drogada capaz de me roubar ou matar ou até pior cruzes que eu devia estar muito embeiçado para ter metido uma gaja daquelas lá em casa que rata todas elas têm e se o meu mal é esse anda por aí cona mais fina que receba o meu dinheiro e não me traga problemas. Bebo o último e mando-o à puta que o pariu que paguei um copo não paguei ao padre.
 
Assim que entrei na sala dei logo conta que o quadro não estava no sitio, uma coisa daquele tamanho ocupa espaço mas para mim é o equivalente a toda a casa quase como entrar numa gruta e ali ficar a descobrir os seus segredos e agora sem poder conseguir percorrer as suas galerias e lá permanecer o tempo que me apetece sinto-me violado. Onde está o meu quadro azul? A Russa levou-o e diz que está bem guardado e sem males mas ao pé de mim não vai ficar porque me faz males à cabeça e aqui e toca-me no peito e na barriga e na cabeça, insisto que o quadro é meu não tinha ordem de levar o que é meu e levantamos a voz. Pela 1ª vez aquele som de caramelo parece-me queimado e fala na sua língua nativa durante muito tempo tudo e mais alguma coisa que não percebo nada mas parece ser muito ameaçador porque aperta os olhos claros até ficarem como duas fendas no rosto bolachudo muito encarnado e o pano que tem na mão vai agitando na minha direcção com movimentos curtos mas semelhantes a um chicote. Quero o quadro azul já disse mesmo fazendo-me mal preciso desse mal em mim porque gosto de o sentir a magoar-me.
Não houve explicações nem despedidas nem choros. Um dia estava e a seguir não estava como se nunca estivesse estado. Ficou o quadro e as minhas lembranças muito nebulosas e revoltadas mais a Russa para me consolar com a sua garrafinha de poção mágica que no fim das contas só me atordoa. É isso, toda a vontade e todas as montanhas do mundo que tive dentro de mim mais as palavras que finalmente soube como dizer e não cheguei a dizer caíram para dentro de mim fazendo um peso maior que eu que não tenho força para acartar. Sem explicações agarrou nas suas coisinhas e foi-se não deixou um recado ou um perdão ou uns minutos de espera para nos olharmos de mãos dadas e assim ficarmos. Não houve uma última vez de sexo ou uma última vez de amor fundido que eu amo esta desgraçada que me trouxe uma tristeza tão grande para dentro do peito que nem sei o que é isto, deve ser tristeza ou amor como diz a Russa. Quero chorar mas não sei fazer e abro muito a boca e não sai som nenhum mas sei que se estragou qualquer coisa cá dentro do meu corpo.
Bebo mais um mesmo a arder-me tudo até ao ânus ou até à alma que nestes últimos tempos tenho alguma dificuldade em separar um do outro ou dizer onde começa um e termina o outro. Pensamentos de merda ou coisa nenhuma a partir de certa altura não me lembro de nada e até é bom. Mais um taberneiro nojento ou vais dizer essas coisas dignas de um ser humano preocupado com outro que não devo beber mais e que me faz mal ou que estou a dever-te dinheiro como essa freguesia a dever anos à cova que te bate as pedras todo o santo dia sem consumir um tusto, bebo mais um para me aliviar a subida e vou-me. Não sei para onde que quando chego os olhos afligem-se naqueles azuis que pintei ou na carne da miúda que dorme enrolada na minha cama e se escapa para o sofá mal entro, estará viva por dentro ou por fora ou serei eu que estou morto e a noite finalmente me chegou, perguntas de merda, vinho de merda, merda de vida.
Sempre soube mas talvez tivesse esquecido propositadamente porque tudo está perfeito até deixar de ser perfeito e ser catastrófico. Ou sempre soube e arranjei um botão para desligar essa parte feia que não tinha acção nenhuma no que está perfeito e belo voltando a premi-lo se houvesse necessidade de haver o feio. A merda toda é que não é uma questão de estética ou de beleza ou até de esquecimento foi estupidez da minha parte acreditar que alguém viciado pudesse simplesmente deixar de o ser. Sinto-me enganado porque comprei um bilhete para um filme de 5ª categoria em que eu próprio fui parte do enredo como o mais gozado da plateia inteira. A russa avisou-me e eu caguei. Agora não posso dizer que não pois eu próprio a vi com a agulha espetada. Um rolo de carne humana esquecido entre a sanita e a banheira. A russa levou-me para a sala e deu-me um copinho da sua bebida mágica mas não há truques para me fechar os olhos ao que vi nem o botão que eu tinha funciona nem mesmo este céu de Agosto está de acordo com a vida real. Olho o quadro encostado à parede e não percebo nada.
Abres a janela abres a camisa abres o teu corpo. Caminhar igual em pés nus aprendi contigo o que me faz esquecer ladeira abaixo o encosto da taberna não me apetecem copos e não me apetecem sapatos e também da conversa dos velhos não trago saudades da subida até casa. Recluso-me em ti e no teu corpo, abotoo-me na tua camisa, voo na noite de intenso azul achando que é a última, janelas abertas ou o quadro a beber pinceladas e antes que chegue silencío nos teus olhos o que não preciso de dizer tu pões dois dedos na minha boca a mandar calar as palavras que encosto aos dentes.
 
Gosto de sentir a tua garganta latejar como se fosse perigoso teres-me por detrás, a minha palma da mão a sentir um burburinho a descer e a subir como se não soubesses se queres mais ou pedes para ser agora, toco-te e agitas-te como um choque que me passa uma convulsão que nos electrifica, não sei de mim nem de ti nestes instantes, perdemo-nos e logo a seguir achamo-nos num liquido saboroso que me recorda a tela, azuis e terra e nós para sempre imortais num acto animal de cópula necessária porque é um alimento como o que levamos à boca. Abro a janela e a noite ainda é profunda.
 
Não consigo deixar de olhar esta tela e já nem és tu que és o objecto maior nela, é o todo das cores que a começaram a fazer viver como um todo que somos. Sinto-me vivo pelas cores que mancho em cada pincelada que dou, em cada tinta que preparo. De repente voltei a ser rapaz outra vez. Mas tão novo como quando andei em Belas-Artes e tinha o fascínio de aprender. Uma fome continuada que não dava sossego e chegava a ser incomodativa pela obsessão com que arrastava os demais ao meu redor. Do que me fui lembrar. Do que me fui lembrar voltar a sentir e viver e gostar e tal como os copos que viciosamente chupo no tasco quero mais e não quero voltar a perder, tudo o que preciso está nesta tela e nestes tubos entortados de tanto serem espremidos para me fazerem voltar a ter dor e prazer. Sem separação de dias e noites.
 

Terminei o teu esboço e nem precisei que voltasses àquela posição estática, o momento ficou para todo o sempre gravado na minha memória e na minha orelha e em toda a minha pele. Só de me lembrar sinto uma electricidade a correr-me pelas costas. Falta agora o trabalho grande, colorir, quero pintar-te a azul grandes tons de azul e os telhados a uma aguada terrosa ao fundo, depois hei-de mandar emoldurar e pendurar aqui na sala onde os tectos possam assistir a este bocado de momento pelo resto das suas vidas e das nossas. Ou pelo resto da minha, é tudo uma questão de conceito ou da chegada da noite não importa, o que interessa és tu teres chegado à minha nesta altura não noutra e se foi agora é porque é agora que sei dizer o que nunca quis. Não vejo um azul sinto tonalidades que me vibram e sinto-me vivo.
Olho para ela enquanto ela olha não sei para onde sentada no parapeito da janela como se o cavalgasse, uma perna para dentro e a outra para lá e as costas ligeiramente amarrecadas, traço no papel as linhas do contorno do seu corpo esguio, mais distantes os telhados avistados e mais perto o sofá, a mesinha. Estás imóvel como se soubesses que te desenho e balouças a perna a dar sinal de vida, os riscos saiem-me como há muito imagino, os trabalhos que tenho feito afinal não me atrofiaram a mão, não te mexas por favor nem um milímetro é só o que peço mas não lhe digo nada se lhe disser é capaz de saltar dali ou voar só para me contrariar ou porque não quer sei lá, eu quero é marcar-te no papel, tenho a certeza que se te desenhar não foges e esta é a beleza do instante, a inquietação. Olhas para mim e sorris não sei porquê, páro a mão pouso o lápis fico com medo. Vens até mim, abraças-me e dizes baixinho ao meu ouvido diz-me que não me mandas embora e eu não vou embora nunca mais.

Quase meio Ano sem aparecer e é isto, este silêncio que me obriga a um silêncio de frade onde os meus tectos de florões centenários parecem agradar-se sem nada mais importar e tudo pára, a janela aberta é outro mundo descoberto e das perguntas que tenho adio porque tenho medo que ela se vá de novo, se faça ar azul e se ale desaparecendo como se eu fosse um louco cheio de interrogações para um esboço desenhado a quem dei vida e mais ninguém o veja para além de mim. A russa diz que ela não pode cá ficar que me vai roubar mas a verdade é que ela já me levou tudo o que era de valor, o resto são restos, coisas que fui amontoando dentro de casa para fingir que sou normal. Afinal nunca tive o prazer nem a vontade de dizer as palavras até aquele dia e essa dor misturada com a tinta foi única, uma sensação que não esqueci e que se instalou por dentro como uma doença que não consigo dizer, nem mesmo aos murmúrios da noite a chegar.
Não me adianta não respirar, do outro lado da porta a vizinha bate leve, raspa, sinto-lhe o corpo encostado à madeira e a mim apetece-me escancarar tudo para que a gorda se despenque para este lado pois não desiste e insiste não há paz para os vivos quanto mais para os que se querem passar por mortos, faço-lhe a vontade e abro. Mas a gorda não cai é a puta de um chinelo só sem chinelos, calçada de ténis e de cabelo a tapar-lhe toda a cabeça, as orelhas, a testa e um pedaço do pescoço nem sei que diga agora que está aqui deve ter sede e de repente o azul que vejo em todo o lado desapareceu. Entra e ela entra devagar a roçar a moldura da porta sem tirar os olhos de mim e eu dos dela não sei se a hei-de agarrar ou ir buscar um copo de água ou fazer-lhe perguntas. Sento-me no banco do estirador e ela no sofá e depois levanta-se como se o lugar estivesse ocupado vem até mim e põe a mão sobre a folha branca, mexe nos lápis, nos pincéis, vai até à janela e abre-a, debruça-se encosta-se no parapeito a ver o rio ao longe e o outro lado, os candeeiros perfilados, as caravelas recortadas com o corvo símbolo da cidade. A noite está calma e sem vento, ponho-me ao seu lado.
Talvez se esta morrinha não caísse tão devagarinho a lustrar a calçada eu não me lembrasse dela, fechava a janela por causa do calor e debruçava a cabeça sobre o estirador nos papéis que estão em branco à espera de um traço um esboço um projecto que apareça à frente da vista ou um clarão que apague a mancha de azul que inunda todas as outras imagens que mal tentam aparecer aguam-se em manchas lentas até se dissolverem em castanhos sépias encardidos. Mas não para. Nem chove mais nem para. Uma merda. Fica neste constante respingar suspenso como se a qualquer momento me deixasse adivinhar mesmo no momento em que me preparo para fechar as janelas que há-de aparecer a arrastar o chinelo mesmo nesse momento a qualquer momento. E não passo disto. O momento. O branco. A diluição. O encardido. Agora vou mesmo fechar a janela não quero saber mais de momento nenhum quero chova muito ou pare de vez. Só me faltava baterem-me agora à porta, a vizinha a uma hora destas não há paciência, faço-me de morto ou morro de vez.
Encomendas para este dia que é um dia que nada me diz, cartaz para a criança, fiz o que tinha a fazer, pai que sou sem nunca ter sido, engraçado como guardei a questão assim como arrumei o trabalho encomendado, é para fazer faz-se, dá cá toma lá, recebo o meu não me voltem a pedir coisas destas que eu não tenho perfil para coisas de criança, embuchei a mulher em terras de África sem ter sido consultado, uma paternidade pelas costas e no final tudo morto sou um pai igual ao meu não quis ser o que sou e nem pedi para ser, é o cartaz, publicidades a crianças felizes por um dia mas só mesmo neste em que por encomenda se disfarça a noite, recebo o meu e não quero pensar mais em filhos ou em pais e especialmente em mim que não sou filho de um que não me quis.
Depois de ter entregue os trabalhos resolvi andar pela cidade, desta vez não trouxe o carro é uma estucha ter de arranjar lugar para estacionar e dar dinheiro para parquímetros mais vale dar a moeda ao elefante do jardim do zoológico. Mas esta Capital está velha, decadente, cada vez está mais cheia de animais e eu que pouco saio de casa e do meu bairro da minha rua não tenho paciência para estas incursões e logo me arrependi da decisão, os barulhos confundem-me e os sinais não dão tempo para atravessar e as pessoas são mal educadas, dão encontrões, cospem no chão e a quantidade de pedintes e dos que arrastam roupas e carrinhos assustou-me pela violência do número crescente desde a última vez que me tinha afoitado em semelhante aventura. Quando iniciei a subida na minha calçada e me senti de novo seguro como em terra firme, o rio ao longe avistado brilhante é que tive a certeza do forte em que me resguardava. Pensei na miúda de um chinelo sozinha, se estivesse comigo eu podía defendê-la daquela selvajaria toda e mostrar-lhe da minha janela a noite a chegar vagarosamente sem ruídos e sem medos.
Acordo com o barulho das chaves a tilintar na mão da russa à porta do quarto e a voz de caramelo a dizer-me para ir tomar banho que homem grande não pode ficar na cama até à noite, tapo a cabeça, odeio esta mulher que acerta nas coisas e desejo ardentemente estar a sonhar, não sentir o cheiro de comida e que tudo desapareça, agarro o meu membro entre pernas e apetece-me ter uma mulher, apenas o acto em si, nada de outras coisas ou outros pensamentos complicados com frases à mistura em que se fazem perguntas e esperam-se respostas,  só me quero vir e espero que a russa não volte a entrar no quarto por amor de deus porque estou quase, quase. Sinto a mão a latejar ou o pénis ou a testa ou o pescoço e a voz da russa lá para dentro mas não sou capaz de responder, deixa-me daqui a um bocadinho já te digo tudo mas não agora miséria, tens de perceber que há momentos que são só meus e acabaste de me entrar no sono, no quarto, nos lençóis, na pele, é a tua voz que se infiltra, dá-me um tempo por favor. Aparece à porta do quarto com uma chávena de café e pergunta-se se estou decente, não te respondo russa mas obrigado.
Olho para esta porcaria e não vejo nada, nada que se diga que se veja, que se diga que presta, trabalho de merda e o outro está aqui está a sarnar-me o juízo por causa dos prazos, e elas que não me saiem da cabeça, as duas à vez e depois mais uma que a outra e a do chinelo sempre aqui atrás de mim pintada de azul, sinto-a atrás do meu pescoço e a dos cabelos no sofá a rir, a enrolar bocados do cabelo nos dedos, quando me volto não está ninguém, uma porcaria de trabalho este. Olho os florões no tecto e dói-me cá dentro, peço desculpa pela miséria que apresento aqui em baixo no estirador, não sou um génio. Apetece-me chorar, chorar e esquecer que estou sozinho sem ninguém, ter pena de mim próprio por querer voltar atrás e voltar a dizer não que se pudesse dizia não outra vez, ficava sozinho outra vez, afinal também tenho direito a ter os meus momentos de desespero que diabo. O mal disto são estas gajas, aparecem e depois vão-se mesmo que um gajo diga para elas irem não é bem para elas irem de vez. Só de vez em quando.

É noite funda e o sono foi-se, foram-se os copos emborcados para o fundo do despejo de um estomago vazado, não me lembro se hoje comi, só me lembro do rosto dela e da cabeça dela de cabelo muito rapado, os pés muitos sujos. Tanta fragilidade. Até onde os meus olhos conseguem ir já varri a calçada mas o amarelo dos candeeiros apagam mais a vista do que alumiam e não há ninguém a quem eu possa perguntar se a viu passar, há-de ir a arrastar o outro chinelo e pelo som mesmo que a não consiga ver hei-de reconhecê-la e saber que é ela, grito o nome, qual nome agora me lembro que não sei o nome dela e a estas horas não me posso por a dizer puta de um só chinelo à janela ou a berrar a miúda que tem sede ou aquela que eu provei e que tem um sabor único a azul. Está mais azul que o negro da noite, vem-me de dentro e mais fundo que o estomago, aposto é da barriga da noite.
Pergunta-me que tenho eu que estou emburrado, burra é a tua prima ó taberneiro duma figa, mas palavra de honra que dou comigo a pensar na outra casada, fiquei parvo, nunca a imaginei casada, para mim sempre haveria de ser a minha rapariga dos saltos de martelinho toda vivaça e de cabelos a mudarem de cor como eu mudo de camisa e vai-se a ver casada como é que isto veio a acontecer o mundo dá cada volta. No fundo sinto-me envergonhado. Envergonhado. Não devía ter feito o que fiz. E ela também não devía ter deixado levar as coisas por diante, casada porra e vai deixar um gajo comê-la! Está bem que fui, não foi um sacana qualquer mas mesmo assim! E ainda me pergunta o taberneiro porque é que estou emburrado? Dá-me outro e mete na conta. Daqui até lá acima preciso de muito combustível para subir a calçada, entrar e lembrar-me da cena, será que ela se lembra? Dei-lhe para ela se lembrar e ela também me deu, é melhor nem me por a pensar naquilo senão fico aqui em pulgas e a outra? A do chinelo? Que saudades... Nem acredito que pensei nisto. Anda enche outra vez e põe na conta.
Isto podía ser a repetição da cena anterior que o cenário é o mesmo e as personagens até se vestem de igual mas sendo cinema europeu não se podía esperar outra coisa, deve ser por isso que os beefs cada vez mais gostam de nós, de uma forma bárbara diga-se, mas naquele dia ou hoje vai tudo dar no mesmo. Estou eu à janela e eles a descerem a calçada que vai tudo para a manif, perguntas repetidas e respostas repetidas, já disse que não vou estou entretido a pensar no que se passou noutro dia com a outra, tenho aqui para o dia inteiro que aquilo foi uma verdadeira surpresa. Casada. Casada e vai de encornar o marido se bem que dar uma comigo não é bem traír o marido, nós já fomos íntimos, quase vivemos juntos, bem que ela quería eu é que não fui nessa, agora estaría eu com um peso na testa até parece que adivinhava o futuro. O mal disto são os saltos, aqueles saltos na escada hipnotizam-me e levam-me a fazer coisas que eu não quero ou então é o cabelo ou o cheiro ou o sabor salgadinho sei lá eu. Só sei que estávamos tão bem e de repente se levantou como uma mola e se vestiu e desatou a murmurar pelo marido que tinha de ir embora por causa do marido e eu desprevenido e nu só tive tempo de agarrar os óculos e pôr as mãos à frente do escrito. Aquela noite apanhou-me completamente envergonhado. Talvez porque ainda não era noite profunda.
Conheço o repicar desses saltos de cor e salteado mas digo para mim que é uma partida porque me lembrei de ti no 25 de Abril e até zombei da tua ignorância naquele tempo, tanto tempo, quantos anos passaram, de que cor tinhas tu os cabelos naquele dia, era uma inconstância contigo que não me dava sossego e no entanto era a tua melhor arma só agora o sei.Antes de bateres na porta abro-a, ficas surpreendida e até eu, afinal não foi uma alucinação estás mesmo aqui. Entra e tu entras devagar, os olhos a varreram a sala muito arrumada e limpa, que surpresa não é, senta e puxo-te pelo braço para mim, não sei porque o faço sinceramente mas quero sentir-te aconchegada ao meu peito e cheirar-te o pescoço e os cabelos, ah os cabelos estão castanhos de novo, que pena não me lembrar de que cor tinhas os cabelos naquele dia mas não faz mal, abraçar-te, sentamo-nos no sofá apertados e sem nada dizer, beijo-te os olhos, a boca, seguras-me os pulsos e eu páro. Não dizes nada. As tuas feições aprumaram-se com o passar dos anos e a frescura deu lugar à certeza dos sins e dos nãos nos vincos que despontam ao redor dos olhos, na comissura dos lábios. Abres a blusa e guias as minhas mãos ao teu peito. Desprezo-o, empurro a tua saia para cima, rasgo-te as meias e desvio a cueca do meu caminho, afasto as tuas pernas e só então abocanho os teus seios, desço e a minha língua encontra o teu sabor salgado, sinto as tuas mãos na minha nuca e as tuas coxas a afagarem-me as orelhas. A noite faz-se anunciar e nós dois de olhos fechados.
Estou à janela e lembro de há uns anos estar aqui com uma outra, ela de cravo de papel agitadíssima e sem saber nada de revoluções, nascida antes dela eu divertido da ignorância dela e depois nauseado da parvoíce dela. Há quanto tempo foi isso... Agora à janela só, ainda só, tanto quanto estava naquele ano, a ver a vizinhança descer a rua de cravo ao peito, cravo de carne e com perfume e a dizerem-me adeus e a perguntarem-me a este alto se eu não vou à manif, não não vou, nunca fui dessas coisas, a multidão faz-me sentir solitário. Ou talvez eu esteja descrente de revoluções porque os cravos se fizeram de papel, sem perfume e sem perguntas. Vou ficar por aqui à espera da noite. Quem sabe me traz respostas.
Bato o sebastião no balcão e o taberneiro lembra-me as contas penduradas que a última foi à má-fila e nem dei tempo de lhe dizer quanto devía, que deve ser por isso que há muito não ponho lá os cotos com  vergonha e tudo, e tudo pois então, e a russa, safa-se. Quer pormenores, se é para todo o serviço, todo o serviço, limpar, passar a ferro e cozinhar. Um dos velhotes pergunta se já passei o corredor a pano, gargalhadas, é para isso que pago respondo, para não ter que fazer nenhum e tu ó velho vê lá se te cai a placa, assobios, palmas e pedras de dominó a bater a meias com o gesto de outras a bater, ainda te gastas e depois não sobras para os bonecos, deixá-los rir anda serve-me outro e vais pagar? Encosto as costas ao balcão e vejo a claridade a atravessar o tasco, às vezes vía a puta de um chinelo só a subir a calçada e pensava que desgraçada ali vai agora penso que desgraçado aqui estou a olhar para a porta que não a vejo passar. Vou pagar sim, tudo.