ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Olho para ela enquanto ela olha não sei para onde sentada no parapeito da janela como se o cavalgasse, uma perna para dentro e a outra para lá e as costas ligeiramente amarrecadas, traço no papel as linhas do contorno do seu corpo esguio, mais distantes os telhados avistados e mais perto o sofá, a mesinha. Estás imóvel como se soubesses que te desenho e balouças a perna a dar sinal de vida, os riscos saiem-me como há muito imagino, os trabalhos que tenho feito afinal não me atrofiaram a mão, não te mexas por favor nem um milímetro é só o que peço mas não lhe digo nada se lhe disser é capaz de saltar dali ou voar só para me contrariar ou porque não quer sei lá, eu quero é marcar-te no papel, tenho a certeza que se te desenhar não foges e esta é a beleza do instante, a inquietação. Olhas para mim e sorris não sei porquê, páro a mão pouso o lápis fico com medo. Vens até mim, abraças-me e dizes baixinho ao meu ouvido diz-me que não me mandas embora e eu não vou embora nunca mais.

Quase meio Ano sem aparecer e é isto, este silêncio que me obriga a um silêncio de frade onde os meus tectos de florões centenários parecem agradar-se sem nada mais importar e tudo pára, a janela aberta é outro mundo descoberto e das perguntas que tenho adio porque tenho medo que ela se vá de novo, se faça ar azul e se ale desaparecendo como se eu fosse um louco cheio de interrogações para um esboço desenhado a quem dei vida e mais ninguém o veja para além de mim. A russa diz que ela não pode cá ficar que me vai roubar mas a verdade é que ela já me levou tudo o que era de valor, o resto são restos, coisas que fui amontoando dentro de casa para fingir que sou normal. Afinal nunca tive o prazer nem a vontade de dizer as palavras até aquele dia e essa dor misturada com a tinta foi única, uma sensação que não esqueci e que se instalou por dentro como uma doença que não consigo dizer, nem mesmo aos murmúrios da noite a chegar.
Não me adianta não respirar, do outro lado da porta a vizinha bate leve, raspa, sinto-lhe o corpo encostado à madeira e a mim apetece-me escancarar tudo para que a gorda se despenque para este lado pois não desiste e insiste não há paz para os vivos quanto mais para os que se querem passar por mortos, faço-lhe a vontade e abro. Mas a gorda não cai é a puta de um chinelo só sem chinelos, calçada de ténis e de cabelo a tapar-lhe toda a cabeça, as orelhas, a testa e um pedaço do pescoço nem sei que diga agora que está aqui deve ter sede e de repente o azul que vejo em todo o lado desapareceu. Entra e ela entra devagar a roçar a moldura da porta sem tirar os olhos de mim e eu dos dela não sei se a hei-de agarrar ou ir buscar um copo de água ou fazer-lhe perguntas. Sento-me no banco do estirador e ela no sofá e depois levanta-se como se o lugar estivesse ocupado vem até mim e põe a mão sobre a folha branca, mexe nos lápis, nos pincéis, vai até à janela e abre-a, debruça-se encosta-se no parapeito a ver o rio ao longe e o outro lado, os candeeiros perfilados, as caravelas recortadas com o corvo símbolo da cidade. A noite está calma e sem vento, ponho-me ao seu lado.
Talvez se esta morrinha não caísse tão devagarinho a lustrar a calçada eu não me lembrasse dela, fechava a janela por causa do calor e debruçava a cabeça sobre o estirador nos papéis que estão em branco à espera de um traço um esboço um projecto que apareça à frente da vista ou um clarão que apague a mancha de azul que inunda todas as outras imagens que mal tentam aparecer aguam-se em manchas lentas até se dissolverem em castanhos sépias encardidos. Mas não para. Nem chove mais nem para. Uma merda. Fica neste constante respingar suspenso como se a qualquer momento me deixasse adivinhar mesmo no momento em que me preparo para fechar as janelas que há-de aparecer a arrastar o chinelo mesmo nesse momento a qualquer momento. E não passo disto. O momento. O branco. A diluição. O encardido. Agora vou mesmo fechar a janela não quero saber mais de momento nenhum quero chova muito ou pare de vez. Só me faltava baterem-me agora à porta, a vizinha a uma hora destas não há paciência, faço-me de morto ou morro de vez.
Encomendas para este dia que é um dia que nada me diz, cartaz para a criança, fiz o que tinha a fazer, pai que sou sem nunca ter sido, engraçado como guardei a questão assim como arrumei o trabalho encomendado, é para fazer faz-se, dá cá toma lá, recebo o meu não me voltem a pedir coisas destas que eu não tenho perfil para coisas de criança, embuchei a mulher em terras de África sem ter sido consultado, uma paternidade pelas costas e no final tudo morto sou um pai igual ao meu não quis ser o que sou e nem pedi para ser, é o cartaz, publicidades a crianças felizes por um dia mas só mesmo neste em que por encomenda se disfarça a noite, recebo o meu e não quero pensar mais em filhos ou em pais e especialmente em mim que não sou filho de um que não me quis.