ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Primeiro estaco-me no movimento mas depois aproveito-lhe o fio de água e diluo a tinta nesse sal natural deslizando o pincel desde o rosto, pelo pescoço, curvando entre os peitos, a direito no ventre e desaparecendo entre o sexo, não sei o que faço ou só agora o sei, tenho fome como nunca tive mas uma fome diferente e única em que me apetece comer mas que receia não conseguir parar por insaciável, por mais fome ficar a sentir. Cai-me o pincel da mão dormente, não sinto corpo em mim, só a boca, ela ajeita-se à minha boca, é gosto de tinta e de mar e depois só de mar, só mar forte a apertar-me com as pernas e esta fome a abocanhar tudo e o coração na boca e o mar na boca e sinto a respiração dela como um cavalo a trotar e gosto, e gosto e amo.
Aprumo o cavalete mas não encontro chão plano para os meus pés e tudo me parece uma tontura na minha sala, talvez deva abrir a janela e espreitar a rua, sentir a calçada e procurar o leito do rio para deitar os olhos e aplacar os nervos, mas vem ela e puxa-me o braço devagarinho e depois com a mão na minha guia-me o pincel de encontro ao corpo nú e repete, repete sempre pinta-me e só então percebo a arte, a cor, todo o azul da noite e das noites que estão para chegar e que desejei e que tive medo. Sinto-lhe a pele arrepiada de Novembro a deslizar sob os pelo do pincel molhado e esta tela viva recebe-me porosa, sequiosa, pedindo sempre mais tinta, mais mão minha, mais empenho, todo eu cor, leve e profundo enquanto ela nasce brilhante e fresca, a respiração tranquila, os olhos fechados, um fio de lágrima a desbotar no azul.
Vem de toalha embrulhada como uma aparição entre o nevoeiro, sinto um arrepio à medida que se aproxima de mim e reparo que uma gota de água perfeita lhe pende na ponta do nariz. Pinta-me, diz-me, e estas palavras fazem tombar a gota perfeita como uma explosão de uma mina arreando paredes e destruindo os meus tectos a precisar de restauro à medida que desenrola a nudez do turco que a cobre. Tremo, sinto frio, não tenho paredes para me tapar, só a humidade do vapor de um banho ou a limpidez com que a vejo. Pinta-me e agarra o pincel manchado de azul na minha direcção, cor de noite, antes que a noite me chegue.
Impressionante como parece que o tempo demora quando estou à espera e a água não pára de correr, que faz lá dentro que a água não pára, deve beber, anda sempre com sede, vou ter uma conta calada e a puta da água que não pára, vou contar até vinte e se não fechar a água vou entrar que se lixe, a casa é minha e a água também, não estou para isto, quem me mandou trazer esta gaja cá para dentro e os tectos afinal precisam de um restauro, têm rachas não admira, centenas de anos, muita água já correu e o rio há-de ter enchido e vazado, fechou a água finalmente, tanto tempo para tomar uma merda de um banho. Abre a porta e o vapor é tanto que mal a vejo. Não sei o que hei-de dizer mas só me lembro do que aprendi na instrução primária e das gravuras do D.Sebastião muito amarelo com uma gola de favos e a voz do professor a dizer que ainda o esperam numa manhã de nevoeiro, eu não te esperava mas tu estás na minha sala e não sou capaz de decifrar que raio de mistério é este.
Agarro o chinelo sobrevivente e entrego-lhe, é um pertence dela, queres tomar um banho, faz-me impressão a sujidade que tem em cima mas suponho que é uma forma de a aquecer, são poucos os trapos que tem em cima, o silêncio que a levanta e os olhos a perguntarem onde é a casa de banho são surpreendentes, nunca conheci uma mulher que não falasse pelos cotovelos até a muda que vendía jogo pelos restaurantes da baixa e que já se finou fazía mais barulho que esta, vou à frente para ensinar o caminho e as toalhas, o sabonete, se quiseres shampoo embora cabelo tenhas tanto quanto eu e espera que eu saia não te dispas já, bato com a porta, não a quero ver nua, é uma miuda é uma miuda apenas uma miuda desgraçada, uma puta digo para mim, mas vou sempre parar à garota e não saio disto e ao chinelo sujo e miserável e sinto-me mal e triste, quem devía tomar o banho era eu, lavar esta tristeza e escorrê-la de mim desde que regressei.
Bebo outro e peço ainda mais um mas é-me vedado esse direito, sou maior e vacinado mas não gozo da faculdade de beber o que quero, o dono corre comigo, vai-te que já estás a ficar entornado, estou é todo molhado da chuvada, anda serve-me outro, rua com o cão e estica-me o braçolho gordo e potente ameaçando enxotar-me com o pano, não sou mosca mas ponho-me a subir a calçada e a dar-lhe razão para dentro, não sei que tenho que já não aguento tanto como dantes, dantes bebía e bebía e ainda bebía e ficava direitinho, agora é isto. Estou cansado e sem respiração, subo os degraus como a vizinha a raspar os pés na madeira e a pousar as palmas das mãos na parede. No capacho está ela. Descalça. Embrulhada a si mesma e tão ensopada quanto eu. Tem os pés limpos mas as unhas estão sujas com um veio negro à volta. Meto a chave à porta e rodo. Pouso-lhe a mão na cabeça. Ela estica a mão e segura o meu pulso. Abro a porta e ela gatinha para dentro.