ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Marco o número e interrompo a meio para me punir, devo estar parvo, o que é que eu estou a fazer, reinicio a marcação, monólogo critico, mordaz, destrutivo, terceira vez e vou até ao fim, toca, desilusão, mensagem, não digo nada, um estranho a encher uma gravação, o mais certo foi ter deixado o telemóvel num sofá perdido em cantos de aconchego novo em que as palavras que exige ouvir não são pedidas e saiem por assim ser normal entre duas pessoas, normal menos para mim, ainda bem que não falei, evito o embaraço, acerco-me da noite que me enche a sala em directo, batem-me na cara os sons e sinto-me acompanhado.
Ando assim, sem saber se quero ou não, a apetecer-me e a nada fazer para matar a fome deste apetite estranho de coisas do passado. Já pensei em ligar-lhe a dizer que voltei, já me chamei estúpido enquanto atiro o telemóvel para o canto do sofá, já dei em sentir saudades da pele que se arrepiava sob a minha mão e já suspirei de alivio por não ter de voltar a ser submetido àqueles interrogatórios sem fim que terminavam invariavelmente em pedidos de frases batidas. Vem a noite daqui a pouco e nem mesmo assim me aquieto, realça-me o que mais temo e exige-me o que mais guardo.
O querer intermitente é como os olhos abertos e os olhos fechados, quero ter tudo como era antes de partir e não posso voltar a ser o que era porque tantas noites já esperei e outras tantas surgiram para meu sossego. Fica assim concluído que nem sempre tudo obedece à cabeça de um homem, não tinha grande vontade de ir à tasca e dei comigo a fazer os passos que me levavam até ao balcão gorduroso onde alegremente encosto a barriga e demoro propositadamente para me recordar aquela voz de uma mulher que me esperava em minha casa e me esperava com palavras que recuso na minha boca. Mas o exemplo deste caminho é também o exemplo da mudança, direi do querer às vezes, uma intermitência que me justifica a saudade, umas vezes tenho-a outras abomino-a.
Abro os olhos, fecho os olhos, abro os olhos, esta é a minha casa e no entanto tudo parece diferente, estranho, uma hostilidade no pensamento, isto já foi meu e agora é meu nunca deixou de ser a casa, a noite igual no manto que me lembra a barba crescida das horas em que a espero. Acordar aqui de novo e arranjar ninho para as saudades de onde vim e para as saudades que tive deste sitio enquanto estive fora dele. Está tudo nos seus lugares, há pó de meses, tenho para mim que é pó da noite. Estou em casa.