ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Depois de ter entregue os trabalhos resolvi andar pela cidade, desta vez não trouxe o carro é uma estucha ter de arranjar lugar para estacionar e dar dinheiro para parquímetros mais vale dar a moeda ao elefante do jardim do zoológico. Mas esta Capital está velha, decadente, cada vez está mais cheia de animais e eu que pouco saio de casa e do meu bairro da minha rua não tenho paciência para estas incursões e logo me arrependi da decisão, os barulhos confundem-me e os sinais não dão tempo para atravessar e as pessoas são mal educadas, dão encontrões, cospem no chão e a quantidade de pedintes e dos que arrastam roupas e carrinhos assustou-me pela violência do número crescente desde a última vez que me tinha afoitado em semelhante aventura. Quando iniciei a subida na minha calçada e me senti de novo seguro como em terra firme, o rio ao longe avistado brilhante é que tive a certeza do forte em que me resguardava. Pensei na miúda de um chinelo sozinha, se estivesse comigo eu podía defendê-la daquela selvajaria toda e mostrar-lhe da minha janela a noite a chegar vagarosamente sem ruídos e sem medos.
Acordo com o barulho das chaves a tilintar na mão da russa à porta do quarto e a voz de caramelo a dizer-me para ir tomar banho que homem grande não pode ficar na cama até à noite, tapo a cabeça, odeio esta mulher que acerta nas coisas e desejo ardentemente estar a sonhar, não sentir o cheiro de comida e que tudo desapareça, agarro o meu membro entre pernas e apetece-me ter uma mulher, apenas o acto em si, nada de outras coisas ou outros pensamentos complicados com frases à mistura em que se fazem perguntas e esperam-se respostas,  só me quero vir e espero que a russa não volte a entrar no quarto por amor de deus porque estou quase, quase. Sinto a mão a latejar ou o pénis ou a testa ou o pescoço e a voz da russa lá para dentro mas não sou capaz de responder, deixa-me daqui a um bocadinho já te digo tudo mas não agora miséria, tens de perceber que há momentos que são só meus e acabaste de me entrar no sono, no quarto, nos lençóis, na pele, é a tua voz que se infiltra, dá-me um tempo por favor. Aparece à porta do quarto com uma chávena de café e pergunta-se se estou decente, não te respondo russa mas obrigado.
Olho para esta porcaria e não vejo nada, nada que se diga que se veja, que se diga que presta, trabalho de merda e o outro está aqui está a sarnar-me o juízo por causa dos prazos, e elas que não me saiem da cabeça, as duas à vez e depois mais uma que a outra e a do chinelo sempre aqui atrás de mim pintada de azul, sinto-a atrás do meu pescoço e a dos cabelos no sofá a rir, a enrolar bocados do cabelo nos dedos, quando me volto não está ninguém, uma porcaria de trabalho este. Olho os florões no tecto e dói-me cá dentro, peço desculpa pela miséria que apresento aqui em baixo no estirador, não sou um génio. Apetece-me chorar, chorar e esquecer que estou sozinho sem ninguém, ter pena de mim próprio por querer voltar atrás e voltar a dizer não que se pudesse dizia não outra vez, ficava sozinho outra vez, afinal também tenho direito a ter os meus momentos de desespero que diabo. O mal disto são estas gajas, aparecem e depois vão-se mesmo que um gajo diga para elas irem não é bem para elas irem de vez. Só de vez em quando.

É noite funda e o sono foi-se, foram-se os copos emborcados para o fundo do despejo de um estomago vazado, não me lembro se hoje comi, só me lembro do rosto dela e da cabeça dela de cabelo muito rapado, os pés muitos sujos. Tanta fragilidade. Até onde os meus olhos conseguem ir já varri a calçada mas o amarelo dos candeeiros apagam mais a vista do que alumiam e não há ninguém a quem eu possa perguntar se a viu passar, há-de ir a arrastar o outro chinelo e pelo som mesmo que a não consiga ver hei-de reconhecê-la e saber que é ela, grito o nome, qual nome agora me lembro que não sei o nome dela e a estas horas não me posso por a dizer puta de um só chinelo à janela ou a berrar a miúda que tem sede ou aquela que eu provei e que tem um sabor único a azul. Está mais azul que o negro da noite, vem-me de dentro e mais fundo que o estomago, aposto é da barriga da noite.
Pergunta-me que tenho eu que estou emburrado, burra é a tua prima ó taberneiro duma figa, mas palavra de honra que dou comigo a pensar na outra casada, fiquei parvo, nunca a imaginei casada, para mim sempre haveria de ser a minha rapariga dos saltos de martelinho toda vivaça e de cabelos a mudarem de cor como eu mudo de camisa e vai-se a ver casada como é que isto veio a acontecer o mundo dá cada volta. No fundo sinto-me envergonhado. Envergonhado. Não devía ter feito o que fiz. E ela também não devía ter deixado levar as coisas por diante, casada porra e vai deixar um gajo comê-la! Está bem que fui, não foi um sacana qualquer mas mesmo assim! E ainda me pergunta o taberneiro porque é que estou emburrado? Dá-me outro e mete na conta. Daqui até lá acima preciso de muito combustível para subir a calçada, entrar e lembrar-me da cena, será que ela se lembra? Dei-lhe para ela se lembrar e ela também me deu, é melhor nem me por a pensar naquilo senão fico aqui em pulgas e a outra? A do chinelo? Que saudades... Nem acredito que pensei nisto. Anda enche outra vez e põe na conta.
Isto podía ser a repetição da cena anterior que o cenário é o mesmo e as personagens até se vestem de igual mas sendo cinema europeu não se podía esperar outra coisa, deve ser por isso que os beefs cada vez mais gostam de nós, de uma forma bárbara diga-se, mas naquele dia ou hoje vai tudo dar no mesmo. Estou eu à janela e eles a descerem a calçada que vai tudo para a manif, perguntas repetidas e respostas repetidas, já disse que não vou estou entretido a pensar no que se passou noutro dia com a outra, tenho aqui para o dia inteiro que aquilo foi uma verdadeira surpresa. Casada. Casada e vai de encornar o marido se bem que dar uma comigo não é bem traír o marido, nós já fomos íntimos, quase vivemos juntos, bem que ela quería eu é que não fui nessa, agora estaría eu com um peso na testa até parece que adivinhava o futuro. O mal disto são os saltos, aqueles saltos na escada hipnotizam-me e levam-me a fazer coisas que eu não quero ou então é o cabelo ou o cheiro ou o sabor salgadinho sei lá eu. Só sei que estávamos tão bem e de repente se levantou como uma mola e se vestiu e desatou a murmurar pelo marido que tinha de ir embora por causa do marido e eu desprevenido e nu só tive tempo de agarrar os óculos e pôr as mãos à frente do escrito. Aquela noite apanhou-me completamente envergonhado. Talvez porque ainda não era noite profunda.