ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Abalo-me rua abaixo direitinho à taberna, se há sitio que me possa valer é aqui, se há gajo que sabe onde posso arranjar uma mulher que vá limpar a minha casa é aqui. Mas o homem está mal disposto, parece que não me portei muito bem, uma série de acusações que não me apetece ouvir porque estou de ressaca e a pior coisa que se pode fazer a um homem mamado é atirar-lhe com estas merdas à cara. Fala, fala e vai agitando o pano de quadrados que prende à cinta, que desprende, que prende. Dou meia-volta, não me apetece. Ultimamente é isto. Toda a gente se acha no direito de me dar lições de moral a qualquer hora do dia e em qualquer lugar. Começo a subir a calçada e ouço chamar por mim, é ele, vem atrás de mim. Traz os meus óculos de ver ao perto na mão. Regresso com ele para o escuro do tasco, a luz do dia faz-me confusão. Peço um café, uma água com gás, uma pistola. Fica a olhar para mim com o pano no ar. Nem me dou ao trabalho de explicar, sinto que tería de voltar a subir a rua rapidamente e agora não me apetece, não tenho força nas pernas. Falo-lhe da minha necessidade de encontrar uma mulher a dias, diz que vai ver e dá-me um sebastião com um liquido esverdinhado mal-cheiroso. Aponta e ordena que beba. Estou perdido, não tenho nada a perder. Antes que a noite chegue muito há-de chegar e eu daqui não saio.
Não há salvação para quem não quer ser salvo e eu não quero. Abalei-me para o tasco e perdi a noção do tempo, dos copos e da figura que devo ter feito porque hoje a vizinha estava sentada aos pés da minha cama a fazer crochet e a velar pelo meu sossego, como me disse depois quando me trouxe uma canja para sossegar o estomago de tanto demónio. Não sei como entrou, como eu entrei, o que se passou, desta vez deve ter sido de caixão à cova, nas palavras da vizinha foi uma grande carroça vizinho, deve ter sido, mas não o suficiente para a levar daqui para fora, já me chegam de gajas cá por casa. Comi a sopa, enxotei delicadamente a vizinha e fui ver o que resta do meu trabalho. Nada, um monte de papel seco e duro, muito colorido bom para forrar o contentor do lixo da câmara municipal.
Mas não chegou a tanto porque o quente da canja misturada com o pé do barril deu-me uma volta e vomitei-me todo para cima desta obra de arte. É nestas alturas que me lembro da minha mãe, a mão da minha mãe na minha testa. Mordo a lingua. Há uma mulher que faz falta na minha vida.
Finalmente. Sózinho finalmente. Eu e o silêncio. Conseguir ouvir-me. Porque será que as mulheres são tão ruidosas, mesmo caladas são sempre ruidosas, há sempre qualquer coisa nelas que faz um barulhinho qualquer, até mesmo os silêncios nelas têm qualquer coisa que manifesta um som. Eu berrei. Tive de berrar ou ela não parava e não saía. Claro que tinha de chorar. Foda-se. Foi-se embora e levou a malinha dela e entornou-me as tintas por cima do trabalho de dois meses. Não bastava ter-me lixado o dia e a cabeça também tinha de rebentar-me com o projecto. E os tectos. Como estarão os tectos? É isto. Chegou como um furacão, instalou-se, lambeu o que quis e depois de tudo devastado foi-se. Nada sobra. Fica-me uma janela para a noite. Se esta hoje se lembrar de chegar.
Começa a tornar-se insuportável esse tom. Já nem sequer percebo o que dizes, não quero saber, mas incomoda-me o tom da tua voz, temo que caiam os florões, a caliça, o estuque, trabalhos de valor e que perduraram pelos séculos para tu agora aqui chegares e dares cabo disto em três tempos. Não quero ver isto em fanicos, vê lá se te pões a andar daqui, está a começar a faltar-me o ar e a pachorra, porra, que merda de arrependimento que sinto por te ter tocado! Ainda por cima não foi nada de especial, nem recordo como eras, como éramos quando nos comíamos, porque tenho a certeza que nos comíamos é essa lembrança que me vem à memória e agora a porra dos tectos a ruírem não tarda nada, rua! Rua! Rua!!!
Começam as recriminações, que eu não paro de olhar para o ar e não ligo ao que estás a dizer e que é importante e que deixaste de ser importante na minha vida. Não sei se te responda pela mesma ordem mas até é verdade e é uma descoberta bem recente. Se não tivesse ficado deitado de costas depois de darmos a queca não me teria apercebido da beleza e da riqueza dos tectos que tenho na minha própria casa. A verdade é que a tua conversa está a aborrecer-me porque é a continuação do que já conheço, apenas não me lembrava. E também é verdade que descobri que não és importante na minha vida. Só te achei importante quando não te tive. Hoje e agora estafaste uma cova num plano liso, passa-se bem, quiseste há alguns anos pores a falar-me como um boneco de um ventríloquo e queres tentar o truque de novo. Não vou dizer a palavra, não acredito nessa estúpida palavra. Na verdade, não te vou responder, vou esperar que acabes o banho, te vistas e pedir que não voltes. É mais higiénico.
A trabalheira que estes gajos tinham para fazer os tectos! De facto naquele tempo havía tempo que sobrava para fazer tudo e até para isto, e passado estes séculos eu estar aqui a pasmar de adoração a olhar para esta perfeição. E não havía cá nada de máquinas ou coisa em série, era tudo à unha, quanto muito um artesão a fazer um molde e depois o gesso, a flor de liz, uma perfeição, já não se fazem coisas destas. Já nada se faz perfeito, nada. Tudo é imperfeito e há um gosto pelo imperfeito. Aos anos que aqui vivo e no final de dar uma acontece-me ficar aqui a olhar para o tecto e aperceber-me desta beleza mesmo por cima da minha cabeça... Ele há coisas! Perguntas-me em que é que penso. Em nada. É melhor vestires-te e ires embora. Tenho de trabalhar e estou atrasado. E não telefones, sabes como abomino telefones, depois logo se verá como nos encontramos. Queres falar, dizes, agora é que queres falar, mas não te vestes e não vejo porque não possas fazer as duas coisas em simultâneo e vais de caminho para a minha casa de banho e eu atrás, sem entender onde arranjaste esse á-vontade para te movimentares pela minha casa. Lava-te. Eu fico aqui a olhar para o tecto.
Que mania que as mulheres têm de falar de coisas que já passaram. Não dá para perceber. Se pintas o cabelo de encarnado porque eras morena ou loura porque razão teimas em repisar assuntos que estão fora de moda? Digo-te que aquilo que fomos já não somos e aquilo que és agora é o que temos, nada mais, sabemos lá nós como nos damos agora passado todo este tempo, conta-me de ti, o que fazes, como vai a tua vida mas tu mudas a agulha e pedes-me que fale das minhas aventuras, que disparate esse pois se a minha vida é do mais pacato que se possa imaginar e tu não estás de meias medidas e dizes-me que vais mudar isso, isso o quê pergunto eu, essa vida de freira respondes e desabotoas a blusa a olhar-me desconcertadamente, depois tiras os seios para fora do soutien e ficamos os dois neste silêncio absurdo pois na verdade, somos dois estranhos. O que é que se passa nessa tua linda cabecinha ruiva para tentares forçar o que não pode acontecer hoje, agora, já, pois saltamos vários anos da nossa vida e as coisas não funcionam assim. Vou até ti para te compôr mas agarras-me e começas a respirar de uma maneira ofegante o que me parece excessivo. Gostava de ter os meus óculos de ver ao perto aqui à mão para me aperceber do relevo da tua pele ao pormenor. Tocas-me, mordiscas-me e aos poucos fazes-me esquecer o que é conveniente e o que é demais, estamos os dois no sofá, no chão, ergo os olhos e vejo a minha janela toda aberta.
Magia. Uma simples frase e tudo volta a ser como era dantes. És mesmo tu sem sombra de dúvida com cabelo de outra cor e alguns atrasos na performance mas cá estamos nós no ponto onde parámos. Uma tecla premida no comando para tomar fôlego por alguns anos e lá vamos nós ao mesmo. Acontece que eu não pintei o cabelo, aliás perdi foi cabelo e muita da pachorra que tinha para te aturar as birras, por isso se pensas que vens para tirar satisfações dá meia-volta ao cavalo e vai por onde vieste. Perguntas de novo se nada tenho para te contar, por onde andei estes anos e agora vou responder-te silabicamente que já recuperei o som na voz mas vens para mim de braços esticados, apertas-me contra ti tão fortemente, agarras-me o pescoço com a mão, tens a mão gelada que me fazes arrepiar todo. Não digo nada, abraço-te. Depois num rompante afastas-te, olhas-me a chorar e eu já não percebo nada, é para sorrir ou não, voltas a abraçar-me e dizes-me coisas ao ouvido que não percebo, devo estar a perder a audição também a par com a vista, estou velho. Nem tanto, sinto um calor progressivo que me toma entre os joelhos e quero afastar-te docemente para que não te apercebas, é que não estou totalmente à vontade, peço que te sentes mas insistes nestes segredos indecifráveis até que te levo ao sofá e te desenrosco do meu pescoço. Protejo a frente das minhas calças com as mãos e sento-me no banco do estirador, vamos com calma, isto é tudo demasiado para mim, chegas ruiva e silenciosa, depois a pergunta, logo a seguir estes apertos, calma. Dizes-me que tens saudades de mim, daquele tempo, se podemos ser nós outra vez.
Por cada toque na porta o coração quase me salta. Aguento-me. Tudo me vem à boca em golfadas e a veia do pescoço dói-me por ser tão doida nestes segundos em que me prendo ao parapeito da janela para não arrancar a porta e ver-te já. Preciso de esperar e mentir-te, fazer-te esperar enquanto os segundos, dois, três, quatro, cinco, já terão passado o bastante para não demonstrar a ansiedade que sinto. Ando até à porta e calco com força o chão para que me ouças vivo e longe da porta sem estar à tua espera. É agora. Abro e és tu. Não és tu. Fico a olhar-te e embora saiba que és tu confesso que não estava preparado para isto. Perguntas se não te deixo entrar e eu estou tão surpreendido que até perdi a voz. Pousas uma pequenina mala vermelha em cima do meu trabalho no estirador e aproximas-te da janela. Abres os braços ao longo do parapeito. O teu cabelo à contra-luz é uma chama incendiada. Lembro-me de ti morena e loura mas ruiva nunca te tinha visto e palavra que és uma nova mulher. Estou impressionado pelo teu silêncio sobretudo, meia-dúzia de palavras para entrar e esta encenação que me deixa intrigado e atiçado. Não és tu. A veia voltou ao sitio e neste momento tenho a certeza que o meu coração já deixou de bater, não o sinto no peito, tenho a boca seca e não consigo articular uma palavra. Viras-te, traças os braços e perguntas se não tenho nada para te dizer.
É cedo e é Domingo e eu já estou levantado porque tenho o trabalho que já devía ter sido entregue para acabar a ganhar pó em cima do estirador e a servir de base aos copos que vou substituíndo por outros cheios à medida que lhes vejo o fundo circular. Gosto de ouvir os passos na calçada que descem à medida do seu desaparecimento e lembro-me que na minha ausência recordava-os igualmente nas manhãs de silêncio enquanto a mulher ao meu lado dormía desconhecendo o ruído que eu trazía para o quarto para não me sentir tão só. Deve ser esse o meu problema. Nunca me sentir acompanhado com mulher alguma mas sentir mais a sua presença quando estou longe delas. Hoje sinto aquela mulher de pele negra e brilhante sentada no meu sofá a observar-me as costas enquanto trabalho dobrado no estirador. A linha das pernas dobradas a par e enviuzadas sobre a direita empinando os ombros e os seios grandes de mamilos escurissimos. Sei-a nua. Já me virei para a ver diversas vezes, já me levantei e apalpei o estofo à procura do quente de quem se levantou à pouco. Talvez tenha descido a calçada e a veja da minha janela. É dia azul e claro, tanta luz. Ouço saltos na escada de madeira, quem será a esta hora, batem na minha porta, batem no meu peito. Hoje sei quem é.