ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
À medida que os dias avançam a saudade agiganta-se mas o mais curioso e triste é que também os traços das suas feições e o recorte do corpo na contraluz da janela esbatem-se como um pincel que se agita na água para diluir os restos de tinta. Faço força por me lembrar e numa contrariedade tudo parece ir-se aos poucos até mesmo o cheiro do pescoço ou do sexo quando atingia o orgasmo soluçado e silencioso somem-se das recordações visíveis e palpáveis que ainda ontem sentia e me gratificava por manter. Exijo todos os dias o retorno do meu quadro mas a Russa já me sequer me responde e eu temo que o tenha queimado para lhe acabar com a espécie. Nada restou dela e em breve até eu nem serei mais a prova de que ela existiu e fomos um só por várias vezes por vários silêncios e em vários azuis a imitarem noites quando ainda havia dia claro. Não conseguirei manter na minha memória mais que uma história que por não recordar perfeitamente hei-de inventar aos poucos como remendos que se cosem para unir o que de facto aconteceu e o que desejaria tivesse acontecido. Abro a janela e encavalito-me no parapeito como ela fazia mas ela não aparece.
Perco a vergonha e pergunto ao taberneiro se a viu não consigo aguentar mais esta incógnita dentro de mim mas o homem está de mal comigo e faz-se de desentendido que as coisas têm andado um bocado tortas da minha parte diz ele comporto-me como um garoto e já tenho idade para ter juízo, juízo que és homem e insiste na moral da questão enquanto esfrega o sebo do balcão e arranca restos com a unha mas dela não sabe nada e se soubesse também não me dizia que só quer o meu bem e ela só me leva à ruína onde já se viu um doutor como eu a andar com uma mulher da vida e drogada capaz de me roubar ou matar ou até pior cruzes que eu devia estar muito embeiçado para ter metido uma gaja daquelas lá em casa que rata todas elas têm e se o meu mal é esse anda por aí cona mais fina que receba o meu dinheiro e não me traga problemas. Bebo o último e mando-o à puta que o pariu que paguei um copo não paguei ao padre.