ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Disse à Russa que se calhar o melhor é ir à policia e tentar saber noticias dela, ao menos os profissionais podiam ajudar a descobrir alguma coisa. Mas a mulher cresceu para mim e apontou para a cabeça a falar aquelas coisas que parecem agarrar-se aos dentes, não percebi de onde veio aquela exaltação toda e nem deixava falar, que eu estava maluco e batia com o dedo na cabeça  insistentemente, não não e não muitas vezes. Calei-me murcho. Depois acalmou e perguntou que ia eu dizer se não era nada nem pai nem marido nem tio nem sabia nada da mulher, deixar assim melhor para ti, passa tudo com tempo e lá trouxe os copinhos e a garrafa da beberagem. Bebi e ela esfregou a mão grande no peito dela e disse dói aqui mas passa, não passa tudo mas passa, meu filho morreu e ainda dói mas eu viva e dói. Bebi outro de uma golada e ela também com uma palavra na língua dela que me pareceu assentar bem no momento mas não faço a mínima do que queira dizer. Dói é só isso que sei mas ela também sabe.
Que será feito dela é a primeira coisa que penso mal acordo. Há gente que se queixa que quando tem um problema leva-o para a cama e sonha muito com isso. Eu não. Infelizmente. Nunca fui muito dado a sonhos ou a pesadelos mesmo que a coisa seja grave, nem sei porquê pois também já tive a minha dose e se os sonhos fossem apanágio de quem já passou por umas quantas basta lembrar-me do meu pai e do inferno em que tornou a minha vida, um santo cabrão aquele gajo. Gostava eu era de sonhar com ela, tê-la de volta mesmo que fosse no mundo dos sonhos que a realidade não me traz nada nem ela nem noticias. Um pesadelo acordado. Onde será que se meteu e porque se foi embora sem dizer nada são tudo perguntas que me martelam a cabeça e me fazem desesperar, mais que quando a vi naquele estado lastimável. Pesadelos. Para que é que eu preciso de sonhar se tenho a realidade a atormentar-me desta maneira e nem sequer vou acordar para por um fim a um mau bocado?