ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Aprumo o cavalete mas não encontro chão plano para os meus pés e tudo me parece uma tontura na minha sala, talvez deva abrir a janela e espreitar a rua, sentir a calçada e procurar o leito do rio para deitar os olhos e aplacar os nervos, mas vem ela e puxa-me o braço devagarinho e depois com a mão na minha guia-me o pincel de encontro ao corpo nú e repete, repete sempre pinta-me e só então percebo a arte, a cor, todo o azul da noite e das noites que estão para chegar e que desejei e que tive medo. Sinto-lhe a pele arrepiada de Novembro a deslizar sob os pelo do pincel molhado e esta tela viva recebe-me porosa, sequiosa, pedindo sempre mais tinta, mais mão minha, mais empenho, todo eu cor, leve e profundo enquanto ela nasce brilhante e fresca, a respiração tranquila, os olhos fechados, um fio de lágrima a desbotar no azul.

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