ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Atendo, desligam, toca, atendo, desligam, toca, não atendo, não se cala, arranco o fio da parede, pára o som irritante de insecto histérico. Agora o telemóvel. Atendo, não consigo ver quem é porque não encontro os óculos. É o patrão. Sim. Sim. Sim, pode ser, também. Adeus. Não gosto de telefones. Sinto-me um idiota a falar com telefones, nunca gostei de telefones. Não se fala para a pessoa, fala-se para um pedaço de plástico. Evito, sou antigo, gosto de olhar as bocas, os dentes, as linguas, ouvir com todos os sentidos. Só em último caso é que uso o telefone. Metade do que o patrão disse ignoro, sinceramente. Estive a pensar onde estarão os óculos. E quem terá estado a divertir-se a ligar para o outro telefone porque ninguém sabe do meu regresso. Se apanho o cretino, vai ver. Não me entendo porque me irritei tanto. Pasmo, estou pasmo comigo mesmo, desconheço-me.

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