ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
À medida que os dias avançam a saudade agiganta-se mas o mais curioso e triste é que também os traços das suas feições e o recorte do corpo na contraluz da janela esbatem-se como um pincel que se agita na água para diluir os restos de tinta. Faço força por me lembrar e numa contrariedade tudo parece ir-se aos poucos até mesmo o cheiro do pescoço ou do sexo quando atingia o orgasmo soluçado e silencioso somem-se das recordações visíveis e palpáveis que ainda ontem sentia e me gratificava por manter. Exijo todos os dias o retorno do meu quadro mas a Russa já me sequer me responde e eu temo que o tenha queimado para lhe acabar com a espécie. Nada restou dela e em breve até eu nem serei mais a prova de que ela existiu e fomos um só por várias vezes por vários silêncios e em vários azuis a imitarem noites quando ainda havia dia claro. Não conseguirei manter na minha memória mais que uma história que por não recordar perfeitamente hei-de inventar aos poucos como remendos que se cosem para unir o que de facto aconteceu e o que desejaria tivesse acontecido. Abro a janela e encavalito-me no parapeito como ela fazia mas ela não aparece.

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