ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Não sei porquê mas envergonho-me da minha casa e quase me desculpo perante a russa da desarrumação e poeirada que aqui vai, vou puxando livros para um lado e enfiando pincéis dentro dos copos à medida que me admiro comigo mesmo da estupidez do meu discurso e do silêncio dela, afinal nada treme e nem sequer lhe ouço os passos, aliás ela cabe perfeitamente aqui dentro, abro a janela, sei que a noite ainda tarda a chegar mas quero ganhar espaço e arejar talvez mais aquilo que digo e espero se perca com o ruído do que se passa lá fora e ela não entenda do que a necessidade de entrar ar novo. Ela está especada a olhar para as pegadas azuis e eu vou-lhe já dizendo que não é para limpar isso aí não se toca e os tectos também não. Paixões diz ela como se estivesse a chupar um caramelo e depois aponta para o tecto. Pergunto-lhe o nome e ela responde russa, sorri com a cabecinha de lado mas diz que veio da Ucrânia e é engenheira informática mas que isso é de outros mundos e de outras vidas. Eu acho que é de outras noites porque afinal há mais do que uma e não só uma a chegar e quando aparecem surgem de diferentes maneiras e a minha chega só para mim, nem melhor nem pior do para a russa mas é só para mim que esta noite acontece. Peço à russa que comece no dia seguinte.

Sem comentários: