ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Faço contas de cabeça desde que se foi e refaço e volto a fazer por achar pouco tempo ou se calhar é tudo relativo porque por dentro de mim e no espaço da casa está tudo tão sozinho e desamparado como se tivesse acontecido há muito muito tempo e a ausência dela tivesse levado móveis e órgãos do meu corpo tudo junto sem distinção. Entro no quarto como o novo ano, é tudo uma questão de pé à frente do outro e nada mais porque se recuar o dia anterior não foi diferente do ano que agora é novo ou o pé direito atrás do esquerdo, na verdade se entrar ou se sair ela continua a não estar e eu estou sozinho. Faço contas de cabeça às mulheres que me deixaram e essas saídas embora sentidas verdadeiramente nunca foram abandonos porque nunca lhes disse o que não sentia nem a pedido, esta partiu e levou qualquer coisa que até hoje não sei o que é mas sei que a amo e lho disse no silêncio por várias vezes. Nunca me deixou dizer o som das palavras alto, alto forte de modo a que os tectos e os florões se rachassem mais e mais pela temeridade dos sentidos que impulsionava a minha voz nessa verdade tão nítida e pura que quase me agoniava manter dentro da boca se não falasse. Era como se a noite se atrasasse à espera de nós e só depois havia permissão para se chegar ao mundo.