ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Pior que o dia é o dia seguinte porque este tem o gosto das sobras e a claridade dos objectos recebidos. Fartei-me de receber presentes mas se estavam à espera que eu fosse oferecer alguma coisa bem podem morrer antes que isso aconteça, odeio todo este sentimentozinho de boa vontade e paz entre inimigos que teatralizam quando se amoitam na esquina para espetar a faca mal é dia novo e a troca dos presentes é mais um número de pobre diplomacia com o olho no porco. Tomara que deste mês venha muita chuva para lavar ruas e gentes estou muito farto de lixo e de mim também que podía ir na enxurrada sem se perder coisa nenhuma. Digo à Russa para levar o que quiser do que veio de ofertas mas ela enfia-se na cozinha a falar sozinha naquele idioma peganhento que ninguém entende e assim sendo está feito mais um Natal. Onde será que ela anda nestes dias totalmente encharcada um pé descalço ou os dois para a cova. Dói-me esta idéia que não me larga faz tempo e tenho medo tanto medo.
Trabalho muito trabalho daquele que não é de pensar porque é para agora porque amanhã já é outra época e já ninguém quer saber é isto que o Natal é e é isto que as pessoas são coisa de dois dias e está feito é este o meu trabalho campanhas de um par de dias que se esgotam porque parece que o mundo morre se não tiver acesso a estas porcarias. Faço o que tenho a fazer sem cabeça e sem vontade é pelo dinheiro que faço a minha campanha e é tão mercenária quanto a quadra que me pede para despachar serviço no tempo de fim de semana e ficarmos todos felizes eles com o produto eu com os tintos que hão-de marchar à conta destes serviços. Odeio esta época e o que me faz lembrar do meu pai e de mim e do perú da vizinha e dela que não está comigo. Talvez esteja em África no mesmo sitio do meu filho e nem sei porque me fui lembrar disto e tento afastar este maldito pensamento da cabeça e só a cor vermelha me salta ao plano. A noite tem estado todo o dia.