ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Assim que entrei na sala dei logo conta que o quadro não estava no sitio, uma coisa daquele tamanho ocupa espaço mas para mim é o equivalente a toda a casa quase como entrar numa gruta e ali ficar a descobrir os seus segredos e agora sem poder conseguir percorrer as suas galerias e lá permanecer o tempo que me apetece sinto-me violado. Onde está o meu quadro azul? A Russa levou-o e diz que está bem guardado e sem males mas ao pé de mim não vai ficar porque me faz males à cabeça e aqui e toca-me no peito e na barriga e na cabeça, insisto que o quadro é meu não tinha ordem de levar o que é meu e levantamos a voz. Pela 1ª vez aquele som de caramelo parece-me queimado e fala na sua língua nativa durante muito tempo tudo e mais alguma coisa que não percebo nada mas parece ser muito ameaçador porque aperta os olhos claros até ficarem como duas fendas no rosto bolachudo muito encarnado e o pano que tem na mão vai agitando na minha direcção com movimentos curtos mas semelhantes a um chicote. Quero o quadro azul já disse mesmo fazendo-me mal preciso desse mal em mim porque gosto de o sentir a magoar-me.
Não houve explicações nem despedidas nem choros. Um dia estava e a seguir não estava como se nunca estivesse estado. Ficou o quadro e as minhas lembranças muito nebulosas e revoltadas mais a Russa para me consolar com a sua garrafinha de poção mágica que no fim das contas só me atordoa. É isso, toda a vontade e todas as montanhas do mundo que tive dentro de mim mais as palavras que finalmente soube como dizer e não cheguei a dizer caíram para dentro de mim fazendo um peso maior que eu que não tenho força para acartar. Sem explicações agarrou nas suas coisinhas e foi-se não deixou um recado ou um perdão ou uns minutos de espera para nos olharmos de mãos dadas e assim ficarmos. Não houve uma última vez de sexo ou uma última vez de amor fundido que eu amo esta desgraçada que me trouxe uma tristeza tão grande para dentro do peito que nem sei o que é isto, deve ser tristeza ou amor como diz a Russa. Quero chorar mas não sei fazer e abro muito a boca e não sai som nenhum mas sei que se estragou qualquer coisa cá dentro do meu corpo.