ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Bebo mais um mesmo a arder-me tudo até ao ânus ou até à alma que nestes últimos tempos tenho alguma dificuldade em separar um do outro ou dizer onde começa um e termina o outro. Pensamentos de merda ou coisa nenhuma a partir de certa altura não me lembro de nada e até é bom. Mais um taberneiro nojento ou vais dizer essas coisas dignas de um ser humano preocupado com outro que não devo beber mais e que me faz mal ou que estou a dever-te dinheiro como essa freguesia a dever anos à cova que te bate as pedras todo o santo dia sem consumir um tusto, bebo mais um para me aliviar a subida e vou-me. Não sei para onde que quando chego os olhos afligem-se naqueles azuis que pintei ou na carne da miúda que dorme enrolada na minha cama e se escapa para o sofá mal entro, estará viva por dentro ou por fora ou serei eu que estou morto e a noite finalmente me chegou, perguntas de merda, vinho de merda, merda de vida.
Sempre soube mas talvez tivesse esquecido propositadamente porque tudo está perfeito até deixar de ser perfeito e ser catastrófico. Ou sempre soube e arranjei um botão para desligar essa parte feia que não tinha acção nenhuma no que está perfeito e belo voltando a premi-lo se houvesse necessidade de haver o feio. A merda toda é que não é uma questão de estética ou de beleza ou até de esquecimento foi estupidez da minha parte acreditar que alguém viciado pudesse simplesmente deixar de o ser. Sinto-me enganado porque comprei um bilhete para um filme de 5ª categoria em que eu próprio fui parte do enredo como o mais gozado da plateia inteira. A russa avisou-me e eu caguei. Agora não posso dizer que não pois eu próprio a vi com a agulha espetada. Um rolo de carne humana esquecido entre a sanita e a banheira. A russa levou-me para a sala e deu-me um copinho da sua bebida mágica mas não há truques para me fechar os olhos ao que vi nem o botão que eu tinha funciona nem mesmo este céu de Agosto está de acordo com a vida real. Olho o quadro encostado à parede e não percebo nada.