ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Gosto de sentir a tua garganta latejar como se fosse perigoso teres-me por detrás, a minha palma da mão a sentir um burburinho a descer e a subir como se não soubesses se queres mais ou pedes para ser agora, toco-te e agitas-te como um choque que me passa uma convulsão que nos electrifica, não sei de mim nem de ti nestes instantes, perdemo-nos e logo a seguir achamo-nos num liquido saboroso que me recorda a tela, azuis e terra e nós para sempre imortais num acto animal de cópula necessária porque é um alimento como o que levamos à boca. Abro a janela e a noite ainda é profunda.
 
Não consigo deixar de olhar esta tela e já nem és tu que és o objecto maior nela, é o todo das cores que a começaram a fazer viver como um todo que somos. Sinto-me vivo pelas cores que mancho em cada pincelada que dou, em cada tinta que preparo. De repente voltei a ser rapaz outra vez. Mas tão novo como quando andei em Belas-Artes e tinha o fascínio de aprender. Uma fome continuada que não dava sossego e chegava a ser incomodativa pela obsessão com que arrastava os demais ao meu redor. Do que me fui lembrar. Do que me fui lembrar voltar a sentir e viver e gostar e tal como os copos que viciosamente chupo no tasco quero mais e não quero voltar a perder, tudo o que preciso está nesta tela e nestes tubos entortados de tanto serem espremidos para me fazerem voltar a ter dor e prazer. Sem separação de dias e noites.
 

Terminei o teu esboço e nem precisei que voltasses àquela posição estática, o momento ficou para todo o sempre gravado na minha memória e na minha orelha e em toda a minha pele. Só de me lembrar sinto uma electricidade a correr-me pelas costas. Falta agora o trabalho grande, colorir, quero pintar-te a azul grandes tons de azul e os telhados a uma aguada terrosa ao fundo, depois hei-de mandar emoldurar e pendurar aqui na sala onde os tectos possam assistir a este bocado de momento pelo resto das suas vidas e das nossas. Ou pelo resto da minha, é tudo uma questão de conceito ou da chegada da noite não importa, o que interessa és tu teres chegado à minha nesta altura não noutra e se foi agora é porque é agora que sei dizer o que nunca quis. Não vejo um azul sinto tonalidades que me vibram e sinto-me vivo.