ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Conheço o repicar desses saltos de cor e salteado mas digo para mim que é uma partida porque me lembrei de ti no 25 de Abril e até zombei da tua ignorância naquele tempo, tanto tempo, quantos anos passaram, de que cor tinhas tu os cabelos naquele dia, era uma inconstância contigo que não me dava sossego e no entanto era a tua melhor arma só agora o sei.Antes de bateres na porta abro-a, ficas surpreendida e até eu, afinal não foi uma alucinação estás mesmo aqui. Entra e tu entras devagar, os olhos a varreram a sala muito arrumada e limpa, que surpresa não é, senta e puxo-te pelo braço para mim, não sei porque o faço sinceramente mas quero sentir-te aconchegada ao meu peito e cheirar-te o pescoço e os cabelos, ah os cabelos estão castanhos de novo, que pena não me lembrar de que cor tinhas os cabelos naquele dia mas não faz mal, abraçar-te, sentamo-nos no sofá apertados e sem nada dizer, beijo-te os olhos, a boca, seguras-me os pulsos e eu páro. Não dizes nada. As tuas feições aprumaram-se com o passar dos anos e a frescura deu lugar à certeza dos sins e dos nãos nos vincos que despontam ao redor dos olhos, na comissura dos lábios. Abres a blusa e guias as minhas mãos ao teu peito. Desprezo-o, empurro a tua saia para cima, rasgo-te as meias e desvio a cueca do meu caminho, afasto as tuas pernas e só então abocanho os teus seios, desço e a minha língua encontra o teu sabor salgado, sinto as tuas mãos na minha nuca e as tuas coxas a afagarem-me as orelhas. A noite faz-se anunciar e nós dois de olhos fechados.
Estou à janela e lembro de há uns anos estar aqui com uma outra, ela de cravo de papel agitadíssima e sem saber nada de revoluções, nascida antes dela eu divertido da ignorância dela e depois nauseado da parvoíce dela. Há quanto tempo foi isso... Agora à janela só, ainda só, tanto quanto estava naquele ano, a ver a vizinhança descer a rua de cravo ao peito, cravo de carne e com perfume e a dizerem-me adeus e a perguntarem-me a este alto se eu não vou à manif, não não vou, nunca fui dessas coisas, a multidão faz-me sentir solitário. Ou talvez eu esteja descrente de revoluções porque os cravos se fizeram de papel, sem perfume e sem perguntas. Vou ficar por aqui à espera da noite. Quem sabe me traz respostas.
Bato o sebastião no balcão e o taberneiro lembra-me as contas penduradas que a última foi à má-fila e nem dei tempo de lhe dizer quanto devía, que deve ser por isso que há muito não ponho lá os cotos com  vergonha e tudo, e tudo pois então, e a russa, safa-se. Quer pormenores, se é para todo o serviço, todo o serviço, limpar, passar a ferro e cozinhar. Um dos velhotes pergunta se já passei o corredor a pano, gargalhadas, é para isso que pago respondo, para não ter que fazer nenhum e tu ó velho vê lá se te cai a placa, assobios, palmas e pedras de dominó a bater a meias com o gesto de outras a bater, ainda te gastas e depois não sobras para os bonecos, deixá-los rir anda serve-me outro e vais pagar? Encosto as costas ao balcão e vejo a claridade a atravessar o tasco, às vezes vía a puta de um chinelo só a subir a calçada e pensava que desgraçada ali vai agora penso que desgraçado aqui estou a olhar para a porta que não a vejo passar. Vou pagar sim, tudo. 
O tapete está limpo, nem uma mancha azulada a lembrar as pegadas dela ou pista que recorde que ela tenha estado aqui e que tivéssemos sido naquele dia dissolução de tinta em água perdida de pincel, uma agitação da memória, tudo se foi, o tapete está limpo e nada há para comparar tamanhos de pés, o meu ao lado do dela descalço e a fome insaciável que me come por dentro, talvez a russa me consiga limpar a lembrança de ti e também de mim e me dê fastio, até lá ajoelho-me e procuro entre fibras do tapete vestígios do que fomos em azul, animal que cata e nada acha para se alimentar... E no entanto, continuas tão viva e salgada na minha boca como naquele dia. A russa tinha razão, não é preciso esquecer. Só porque agora é dia não esqueço que a noite há-de retornar então porque tu haverias de te apagar em mim? Nunca.
De inicio a russa vinha uma vez por semana mas depois começou a deixar-me comida preparada, roupa passada e tive que ajustar o contrato, tudo de boca claro mas não me sentía à vontade estar a pagar-lhe menos do que ela fazia. Agora está cá em casa três dias por semana à escolha dela, vem quando acha que deve vir, não me importuna com conversas e responde quando lhe faço perguntas sem andar com rodeios. Por isso quando hoje de manhã me disse que o tapete devería ser limpo não me zanguei. Também não lhe respondi. Tirou uma garrafa de um saco de plástico, serviu dois copos, fechou a janela e disse senta e sentou-se. Senhor não tem que esquecer, disse ela com a voz de caramelo e como eu não me tinha mexido do sitio ela levantou-se, trouxe o copo até à minha mão e bebeu de um trago. Eu fiz o mesmo. Até as lágrimas me vieram aos olhos, isto é álcool puro porra! Queres matar-me? Bebe, muito bom e bateu-me no peito com palmadinhas que ressoaram, senti um incêndio, mas logo a seguir passou e soube bem, muito bem. O que é isto? Senta, senta e voltou para a cadeira. Sentei-me e avancei o copo para mais um, o que eu preciso é de esquecer, ela abana a cabeça, nunca senhor, nunca esquecer...