ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Um dos velhotes pergunta-me se já arranjei uma mulher para me limpar a casa e eu digo que não graças ao gajo da tasca que ficou encarregue do assunto e não me liga pevide, o palito entre os beiços ignora-me e serve-me outro à laia de tá bem já me tinhas dito, e o velho segue a conversa com uma pequena muito jeitosa russa que tem andado a meter papéis nas caixas dos correios. Como é que tu sabes disso ó velho mas o taberneiro com o pano enxota as migalhas para o chão e de escarninho e cotovelo no balcão gorduroso informa que o velhote é sabido, ligou para a pequena e contratou-a mas não foi para a limpeza quería que lhe desintupisse os canos só que a russa não foi na conversa, deu-lhe umas todas e ainda avisou a mulher. Batem as pedras do dominó e riem, soltam as placas das gengivas, rio, fazem-me rir, não com muita força mas fazem-me rir, serve-me outro que me quero rir mais preciso de rir e esquecer tudo e também preciso dessa russa que sabe o que quer e sabe por as coisas no sitio. O sebastião enche-se até um fio encarniçado sobrar e marcar o balcão de mármore amarelado pelas queimadelas do tempo e das beatas perdidas fora do cinzeiro, agarro-o e molha-me os dedos, sempre disse ruça de má pêlo quer casar e não tem cabelo esfrega o taberneiro, vou explicar que não é a mesma russa mas não me apetece e perdía-se a piada, vazo o copo e saio sem pagar intencionalmente.
Uma fotografia, uma noticia de jornal, uma carta da irmã dela com mais de um ano e documentação da embaixada a embrulhar tudo. Não há coincidências e eu não acredito em premonições, não sou um homem dado ao esoterismo sempre tive os pés assentes na terra mas é inevitável que o maldito pesadelo não me venha a boca como um bolsar azedo que se cospe de má cara, para quê lembrar o que estava enterrado e afinal quem está enterrado é ela, morta, uma morte sem significado daquelas que se costumam rotular como danos colaterais, uma chumbada perdida e ela achada no caminho, ela e o que carregava na barriga, a irmã a dizer que era meu e manda uma fotografia de quando nós éramos muito felizes, não tenho memória de retratos a dois nem de quando fomos muito felizes nem de saber que ela carregava um filho meu , só sinto a trovoada sobre o meu crâneo como um martelo. A esta altura já serão comida de vermes, principio de terra, tudo a desfazer-se tal como os sonhos quando se acorda sejam bons ou maus, a minha tristeza ficou lá, o filho que não tive está plantado na terra e no ventre-mãe e do que restou faço fogo para que regresse às cinzas, hei-de soprá-las janela aberta quando a noite se apresentar e aí, talvez aí essa fotografia não minta e sejamos realmente felizes.