ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Sou uma besta. Não devia ter tratado a miuda daquela maneira, agora estou aqui roído de remorsos por lhe ter atirado com a porta na cara e lhe ter negado mais água, que bebesse o Tejo se tinha sede e se ela levou aquilo a peito e se atirou, sabe-se lá que merda de vida tem uma gaja daquelas, drogada, completamente drogada, capaz de fazer uma loucura no desespero. Teve uma lata enorme vir aqui bater-me à porta, um desconhecido, eu. Cliente. Bater à porta do cliente a pedir água. Ainda por cima nem me serviu da outra vez. Paguei e não fui servido. Apalpou-me e não comi. Marketing fraudulento. Uma puta de chinelos de meter o dedo. Bem sujos por sinal. Deve ter andado descalça, quem sabe. Se se tivesse enfiado na minha cama sujava-me a roupa. A menos que o fizessemos em pé. De pé. Estou a sentir-me em pé de guerra e vou aproveitar a oportunidade com ambas as mãos. Literalmente. Antes que me caia a noite.
Água. Diz que quer água. Olho-lhe as pupilas, pequeninas como cabeças de alfinete, os dedos dos pés, pequeninos e sujos como amendoins descascados. Ficamos à porta, para este lado não entras, bebe lá a tua água e põe-te a andar, vai curar a tua pedrada para longe e não voltes que isto aqui não é o bebedouro público, porque não foste à taberna, já tinha ido mas correram com ela, e eu com isso? Só me faltava esta, eu à espera da outra, o coração em cima da lingua pronto a cuspir tudo e aparece-me esta fuínha, no que é que eu me fui meter naquela noite em que tudo estava pardo como o raio da zurrapa que bebi, agora não me larga, é andor, não venhas cá mais, estás a ouvir? Quer mais água, está seca, não há mais água, se tens sede atira-te ao rio, fecho a porta como um tiro e odeio-me. Porque merda havía de ser esta a aparecer em vez da outra se eu já estava preparado para vê-la ao fim de tanto tempo. Agora já não estou, que não venha mais. Que nada venha mais, deixem-me em paz ou desapareço.
Os nós dos dedos muito leves na madeira da porta. Fico sobressaltado, serás tu, não te ouvi os passos, ainda me recordo dos teus saltos como castanholas que adivinhavam o teu humor e me consentíam estar preparado para o que aí vinha. Agora não sei, apanhas-me de surpresa, os anos passaram e sinto-me como um rato que farejou o odor do queijo e desprevenido se deixou entalar na ratoeira. De novo o toque na porta quase como um raspar a pedir para entrar com muito cuidado. E se eu fizer de conta que não estou, sustenho a respiração, engulo em seco, tenho a certeza que ouviste eu a engolir em seco e que até consegues ouvir as pancadas que o meu coração dá contra os ossos do tórax, isto é tão estúpido, um homem como eu a fingir dentro da sua própria casa que não está em casa. Levanto-me devagar do banco alto do estirador e como um gato caminho até à porta. O sobrado estala e trai-me, as casas velhas são as pessoas que nelas moram, não posso evitar abrir a porta e ver-te. Escancaro a porta. É a prostituta dos chinelos.
Ainda mal tinha rodado a chave na porta já estava a vizinha a perguntar se era eu. Quem havía de ser, só se fosse alguém a assaltar-me, mas não lhe disse, quería dar-me um recado sobre a minha noiva que tinha cá vindo e que até tinha ficado muito contente passado tanto tempo ainda estarmos juntos, coitadinha, isso é que ela tinha chorado que nem uma madalena quando o vizinho estava para fora. Fico sempre aturdido com a conversa desta mulher. As informações desenrolam-se a um nível e velocidades que sou incapaz de acompanhar. Tive que pedir que repetisse e por partes. Que noiva, que choradeira? A minha, a dela claro. Fartou-se de chorar quando cá veio e eu não estava. Claro que não estava, pois se estive vários anos fora e se não tenho noiva, só pode ter chorado e a seguir quem chora sou eu porque estou a ficar doido com este recado! Decido fingir que percebi para me ver livre da vizinha e meter-me em casa. Abro a janela. O dia está alto. Tudo se junta como pedaços espalhados. Hoje vai demorar muito até a noite descer sobre mim.
Decido-me a desfazer as malas. Tento encontrar-lhes o cheiro da minha casa mas a minha casa é esta onde agora moro, onde sempre morei a maior parte da minha vida. As ausências sempre foram fugas achadas para escapar ao que me incomodava em casa e naquele tempo, a maior perturbação era eu. Fugir de mim ou fugir de casa é um conceito velho. Fugir das palavras que ela quería que eu lhe dissesse, fugir das palavras que acabei por dizer para mim, já sózinho. Ainda bem que não lhas disse, tería sido um tremendo erro, afinal estava tudo certo. Nestas malas não há nada senão roupa, nem podería haver. Fugir para me prender tería sido uma condenação pior do que dizer palavras que não podem ser ditas. Assim está tudo bem, como deve ser, arrumam-se as coisas, nunca mais precisarei destas malas outra vez.
Não sei que mulher é essa que ligou para a taberna. Não deixou nome. Perguntou por mim, quería falar comigo e não deixou nome. Não sei quem terá andado a ligar cá para casa e a desligar quando atendía. Não sei como fui esquecer-me dos óculos na taberna, se nada vejo ao perto sem eles. Não sei porque o material que uso está em ruptura e também não sei porque razão não me apetece trabalhar. Sinto-me desencaixado. Sinto-me apertado dentro da minha casa. Abro a janela ao final da tarde e vejo o dia a morrer e sem saber porquê, sinto um bocado de mim a ir-se com ele por cada vez que esse gesto de atirar os olhos além me condena. E me acalma e pacifica. A noite chega.
Batem-me à porta. Deve ser cedo. Não consigo ver as horas porque definitivamente perdi os óculos. Não consigo achar as calças, embrulho-me ao lençol e pergunto de dentro quem é. É da taberna. Um recado. Não percebo. O patrão falou comigo há pouco tempo, o que é que será agora, mais prazos, que chato de merda esse gajo, não sabe que tenho o meu tempo e a porra do material que uso não aparece, que inferno. Do outro lado da porta falam e eu não percebo nada. Abro uma nesga. Fala de uma mulher que ligou. Não percebo, continuo sem perceber. Peço que ele entre. Ele entra e dá-me os óculos. Agora tudo faz sentido. Sinto-me vestido. Claro. Uma mulher que ligou, não tem nada a ver com o patrão, onde é que eu fui buscar essa do patrão, ele tem o meu número de telemóvel. Uma mulher que ligou cedo. Que horas são isto, são horas de almoço, responde o da taberna. O problema é a falta de visão. Deixa-se de ter o alcance sobre as perspectivas.
Atendo, desligam, toca, atendo, desligam, toca, não atendo, não se cala, arranco o fio da parede, pára o som irritante de insecto histérico. Agora o telemóvel. Atendo, não consigo ver quem é porque não encontro os óculos. É o patrão. Sim. Sim. Sim, pode ser, também. Adeus. Não gosto de telefones. Sinto-me um idiota a falar com telefones, nunca gostei de telefones. Não se fala para a pessoa, fala-se para um pedaço de plástico. Evito, sou antigo, gosto de olhar as bocas, os dentes, as linguas, ouvir com todos os sentidos. Só em último caso é que uso o telefone. Metade do que o patrão disse ignoro, sinceramente. Estive a pensar onde estarão os óculos. E quem terá estado a divertir-se a ligar para o outro telefone porque ninguém sabe do meu regresso. Se apanho o cretino, vai ver. Não me entendo porque me irritei tanto. Pasmo, estou pasmo comigo mesmo, desconheço-me.
Por mais que me atirasse sobre o plano este nunca deixou de estar como sempre esteve, mentira, ficou com alguns circulos do fundo do copo, uma bonita cor aguarelada impossível de reproduzir à força de pincel. Belas marcas, belo tinto, boas memórias. Quase sinto um alívio de pequena alegria. Ou um cansaço sobre o pescoço pela falta de sentir a respirarem por cima de mim, os cabelos a fazerem-me comichão sobre a nuca nas tardes de electricidade vermelha que antecedíam um calor peganhento e num segundo rebentavam os tímpanos na água a direito. Era nessas tardes que eu melhor mentía, tão fácil dizer que havía de voltar se nem a mim eu conseguía ouvir. Depois tudo passava. Até o medo. O das perguntas. Porque havía sol claro e África era só um continente, não era a mulher que se deitava comigo antes do anoitecer.
Ao subirmos a escada apercebo-me que não há qualquer ruído a calcar os degraus o que me deixa uma sensação estranha pois o minimo que esperava era um som picado, uns saltos finos na madeira moida pelo tempo, mas nada. Só quando abro a porta de casa e a convido a entrar à frente e a miro nas costas é que me apercebo que vem de chinelos. Chinelos de borracha, devo estar grosso de certeza, paguei por uma prostituta de chinelos de enfiar o dedo, ao que eu cheguei ou então ao que ela chegou, devo ser o último do dia, vai-me despachar num ápice, lavar-se e vai a correr para o chulo entregar-lhe o guito e eu que me lixe. Já não bastava eu ter de pagar, dantes eram elas que me davam borlas agora isto. Senta-se, levanta-se, mexe nas coisas, toca-me nas partes, está visto que quer aviar-me num instante. Peço-lhe que saia, já lhe paguei, ninguém fica a perder, pede-me água, dou-lhe água. Vejo-a beber até deitar água pelos olhos, é uma criança, que idade tens tu mas ela desaparece mais rápido que a noite quando chega.
Trabalho é coisa que não falta mas o material parece ter-se escoado assim como as casas da especialidade. Já bati quase todas onde costumava abastecer-me e delas só resta o número de policia. Pior que isso é que nunca ninguém ouviu falar que alguma vez tenham sido de outra coisa do que aquilo que agora são. Pergunto-me se terei voltado para o mesmo sitio, já que até a minha casa não me parece tão minha e a cama evita-me tanto quanto eu a ela. Vou alternando o sofá, o estirador e a janela enquanto os entermeios da memória me punem com clarões de luz que me cegam em que uma mulher loura, uma mulher negra e um esboço de mulher se sentam a meu lado no mais completo silêncio. É ensurdecedor ouvir-me.
Não consigo dormir e não consigo sonhar. Desabituei-me da condução pela direita e tudo o que um homem deve fazer às direitas eu pareço ter perdido num mato esquecido que muito procuro e só acho cimento e arames. Encostei o carro. Vou até à taberna onde os outros ainda me conhecem e me chamam o nome. De resto nada parece saber de mim e eu não me incomodo. Nem sequer desfiz as malas embora saiba que não há retorno e tento convencer-me de que devería sentir tristeza por tal mas não sinto, não sinto nada, sinto-me anestesiado e pronto para ser cortado e depois cosido e depois com uma palmada no ombro pronto a andar. Só não sei para onde. Talvez para dentro de casa e desta para a taberna, rua acima, rua abaixo. Até que a noite se lembre de me visitar e acordar em mim o sonho que parece ter adormecido com uma anestesia tão profunda que entrou em coma.
Não é pó o que cobre os anos do esquecimento, são terras vermelhas que se acamam à medida do que se vai pedindo em troca do menos bom. Nunca achei esta casa tão pequena como hoje e no entanto nem ela mirrou e nem eu cresci, muito pelo contrário, os anos encontram-nos na posição inversa. Habituei-me a vistas largas e sem esquadrias, para que servem janelas se os olhos rodam ao largo e tudo o que se pode alcançar ao mesmo tempo é apenas aquilo que o corpo permite ver, de que me servem estes vidros tão sujos se os meus olhos trazem colados o horizonte vermelho? Talvez o melhor seja deixar-me de retóricas, lançar o pó ao barco que me trouxe e afundá-lo antes que seja dia.