ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Gosto quando chegas atrevida e inicias as manobras de provocação em pleno patamar com poses voluptuosas em que roças a perna à ombreira da porta, fazes-me rir, estes desequilibrios entre o recatado do ontem e o lascivo de hoje são um aperitivo que não dispenso, quero mais, venha o prato principal mas tenho cá para mim que quem caça és tu e eu sou a presa pendurada pela garganta a asfixiar enquanto tu te lambes no meu sangue. Esta é uma imagem que me dá tesão, mais tesão, conto-te e tu de quatro imitas um felino a dominar a minha sala, o teu território, acabamos os dois à sombra do sofá na melhor perspectiva de uma árvore da savana. Ficas muito séria, nem vou perguntar o que foi porque sei o que é, lá vem aquela palavra que me arrepia e tento pôr-me a salvo enquanto não a dizes, começas por falar de futuro, é tipico, lá vamos nós. O futuro é a noite que há-de chegar ou o dia que há-de chegar a seguir à noite. Até lá, o entardecer e é aí que quero estar. Contigo se tu quiseres.
Chegas cheia de sugestões, planos, só apanho metade, o calor que está retira-me a capacidade de me concentrar no que quer que seja, evito movimentos de maior, em compensação para ti é o máximo, quanto mais calor melhor, é disso mesmo que falas, calor igual a viagens, mar, praia, cocktail de frutas, que me dizes, eu não digo nada, só quero que baixe a temperatura para eu voltar ao meu normal mas tu tens a solução ideal para o meu problema, uma escapadinha até à costa não é boa idéia, acho uma péssima idéia, ninguém me arranca da minha sala com este calor, é nestas alturas que me apercebo como és, mas não completas a frase, ficas de boca aberta para não sufocares o que realmente pensas e também para não me magoares. Velho? Arranjas a melena que convenientemente te tapa os olhos e abanas a cabeça, eu rio. Não me magoas, é um facto e eu já era velho quando começámos a andar e quando terminarmos hei-de continuar a ser um velho, é incontornável a nossa diferença e a nossa apetência pelas mesmas razões. Tal como a noite se deseja depois de um dia escaldante.
Quando acordei já te tinhas ido, deu quase a impressão de que nem passaste cá a noite ou não fosse a escova de dentes molhada pousada apressadamente entre as torneiras do lavatório a denunciar mais tempo do que a visita habitual. Não gostava nada que isto se tornasse um hábito, gosto das coisas como estão, tu no teu sitio eu aqui, por alguma razão não fui viver contigo quando me convidaste, é que há coisas na vida que são mesmo assim, têm de ser assim para dar certo e eu não sou homem de viver com ninguém, tenho as minhas manias e os meus vicios que gosto secretamente de cumprir sem ter que dar satisfações a ninguém e depois estou demasiado adiantado em relação à tua idade para começar a ser outro homem, além de que gosto de mim assim e nem nunca me questionei que pudesse ser de outra forma. Isso são coisas de um passado que não vem ao caso. Uma noite longínqua em que pareceu que nunca mais havería de haver dia claro.
Não te ouvi, a conversa à janela com a vizinha do lado divertía-me. Entras com cara de poucos amigos, não gostas de esperar, vais logo buscar coisas que nada tem que ver com o facto de não ter ouvido a porta, falas de importância e eu acho que isto são trocados sem importância nenhuma, passemos adiante, deixa-me apalpar-te, sentir-te, vem cá, esquece tudo, o dia, a surdez, a vizinha, dá importãncia a nós que isso é que vale agora. Fazes-te rogada, já percebi o jogo, apetece-te tanto quanto a mim mas a praxe é fazeres o número da recatada e dares-me trabalho, então que seja, seduzo-te, mas nunca estou certo de que é o estilo adequado para o que esperas e nesses minutos em que ensaio vários personagens para te contentar o dia resolve despedir-se manso, entro em ti, tu fechas os olhos e acabamos por adormecer os dois.
Sonhei contigo esta noite, uma coisa estapafúrdia, tanto eras real como um esboço feito por mim, quería deitar-me contigo e cada vez que te agarrava tornavas-te um plano de trabalho. Sonhos, os sonhos são sempre assim, eu raramente sonho mas deste lembro-me especialmente bem o que me leva a outra questão bem terrena, quero-te, há vários dias que não nos temos e a verdade é que são muitas as diferenças entre nós mas o sexo é sempre fantástico. Cruel realidade, assim que te abraço e beijo olhas-me com um já estás a pensar nisso, claro que estou a pensar nisso, nisto, tu não?Não, ainda não pode ser, não pode? não, amanhã ou depois, mas amanhã ou depois é muito tempo e além disso podíamos ter hoje e amanhã e depois voltar a ter, não, já disseste não como um ponto final e só me resta arrumar a tesão até amanhã ou depois como se fosse possível guardar para dias futuros uma coisa destas, mas estas coisas só são boas quando estamos afinados e sendo assim... encostamo-nos ao parapeito a ver o céu, o rio, as gentes, passo-te o braço na cintura, a mão na curva do rabo, chateias-te, lá estás tu outra vez?! Mas eu não fiz nada. Aguardo que o dia se feche e se esqueça do sol.
Ainda não tinha fechado a porta já estavas a enviar avisos à navegação, se hoje te plantares à janela a ver as modas vou-me embora, nem sei que te diga, que tal um olá como estás, mas fico calado porque a minha vontade é responder-te à letra ou seja no mesmo tom ameaçador, se queres ir vai. Vejo que recuperaste rapidamente o teu antigo estilo, desatas a lingua e vens imparável, deve ser para recuperar os dias em que te guardaste na casca e neste momento sinto saudade dessa mulher encolhida no canto do meu sofá se bem que nesses dias tive saudade daquela que agora inspecciona o meu estirador enquanto as palavras lhe saem da boca a um ritmo alucinante. É sempre assim não é, queremos sempre o que não podemos ter, é pois, eu que o diga que neste instante o que mais desejo é que a noite feche este dia.
Ao abrir-te a porta a sensação que tenho é que passou muito tempo sem te ver, muito mais do que um par, três dias, mas acho que é tudo uma questão de se saber ocupar as horas quando estamos sózinhos ou quando nos habituamos à constante presença de alguém e de um momento para o outro essa rotina interrompe-se. Deve ser por isso que te acho diferente, não muito diferente, mas desigual nalguns gestos ou até na forma como ouvi os teus saltos a galgarem os degraus. Abraço-te e nisso garanto que o meu corpo reconheceu de imediato o teu, sinto-me bem por te apertar contra mim mas dura pouco, empurras-me e rematas o afastar de braços esticados com um só pensas nisso, nisso o quê e arrependo-me logo de o ter dito, assim como me arrependo do meu corpo ter gostado do reencontro, não é nada de sexo, mas como me trataste mal acho que também mereces ficar na dúvida e assim sendo ficamos os dois a destoar na sala. Lembro-me de uma sala de espera de um dentista. Estamos para o mesmo mas ninguém vai falar das suas cáries ao desconhecido que se senta ao nosso lado. A janela aberta deixa entrar sons que parecem despropositados neste instante, acho que o melhor sería o silêncio completo mas como é impossível reter o fim da tarde encosto o meu corpo ao parapeito e sinto-me bem por ele me aconchegar.
Ligas, não podes vir, dói-te a barriga, dói-te a cabeça, comeste alguma coisa que te fez mal digo, chamas-me parvo e distraído, não percebo, do outro lado atacas-me e quase sinto o teu dedo na minha orelha a espicaçar-me, são coisas de mulher, insensível, gritas-me. Afasto o telemóvel, detesto gritos, foi para gritares que me ligaste mas de repente é que ligo as coisas e sai-me uns dias dificeis, já podías ter dito, junto tudo e pergunto-me como é que as mulheres conseguem aguentar este processo devastador mas não to digo, calo-me, devo-te todas as palavras que me queiras dizer, é o minimo, mas do teu lado há agora mais silêncio. Mando-te um beijo mas tu desligas sem me dares troco nem tempo suficiente para te dizer que te acho corajosa e assim só me resta ficar debruçado no parapeito a observar as mulheres que sobem e descem a rua enquanto o entardecer vai mudando a cor à calçada.
Sinceramente estes intervalos fazem bem e não é só a mim, a nós dois quero dizer, e também sei que se to dissesse lá vinham as explicações rebuscadas sobre gostar muito e gostar pouco, o estar farto ou haver outra, não é nada disso, simplesmente às vezes é preciso um bocado de ar só para o balão subir. É importante que não se consuma o oxigénio do outro e tu tens essa tendência dramática para os exageros, ou tudo ou nada. Eu sei que isso é fruto da idade e que daqui a uns anos relativizas mas agora é que estás comigo e agora é que devería ser importante veres como te tornas teatral e quase ridicula nesses acessos de umbiguismo, e que muito sinceramente, por vezes me esgotam e chateiam. Doutras vezes dás-me vontade de rir, palavra, mas só depois de teres saído e quando me lembro em reposição das fitas que fazes. Hoje também não apareces, ainda bem, pelo menos hoje a sala fica por minha conta e para gasto do meu oxigénio. Meu e de todo o que a noite se achar no direito de engolir.
Não vens e não me admiro e se queres saber até é melhor assim, pelo menos não fico desconcertado nem armado em adivinho sobre qual o próximo movimento que virá daí, nunca se sabe para que lado estás virada, coisa de lua, mas cansa. Depois parece que qualquer coisa que eu faça para te animar tem sempre o pior resultado e por isso desisto. Ainda bem que não vens, hoje sou eu que estou sem arcaboiço para estas cenas e afinal, quer esteja bem ou mal, não te tenho para me animar nem com bolinhos de chocolate. Passo. Vem quando te apetecer. Hoje sou eu e a noite e nada mais.
Chegas como ontem, visivelmente abatida, olheirenta e de poucas falas. Tenho uma surpresa para ti, mas tu não pareces demonstrar grande interesse no meu interesse, fecha os olhos, fechas, mas se te tivesse pedido para te lançares pela janela acho que também o terías feito com o mesmo entusiasmo, já podes abrir... O que é isso? O melhor bolo de chocolate do mundo, estás sempre a falar deste bolo e hoje está aqui para te deliciares, hum, então? Olhas para mim, depois para o bolo, depois para mim outra vez, levantas-te, achas que estou pouco gorda? Queres é que eu fique ainda mais gorda, obrigadinho pelo recado, percebi-te, mas eu é que não percebo nada do que se está a passar e estou a sentir-me perdido no meio da minha sala com um prato com o melhor bolo de chocolate do mundo nas mãos, que é que eu fiz? Não me respondes, já com o corpo meio fora meio dentro do patamar olhas-me de uma forma tão triste, tão triste que sinto um aperto na garganta, já não gostas de mim, fico mudo, quero falar mas não sei o que hei-de dizer. De repente ficou noite e os candeeiros estão apagados.
Ouvi-te a subir as escadas, nada daquele pique-pique que me lembra castanholas, uma coisa lenta e arrastada, quase a dar para contar as passadas, só um toque na campainha sem o tipico morse, pergunto-me o que virá por aí, entras, até os gestos são lentos, atiras-te para o sofá calada. Que é que se passa? nada, nada? nada, mas sei que esperas que eu insista, que te faça a pergunta de várias maneiras e por diversas vezes até parecer que aceitas e que mereço as tuas confidências, estou preparado para tudo. Cansaço. Não tens descansado, não andas a dormir bem, o suficiente? Atiras-te a mim como gato a bofe, não percebes nada, não é desse cansaço é deste, mas qual? Deste! Então não se está mesmo a ver qual é o cansaço? Eu não, por isso fico calado e quieto, temo que se disser mais alguma palavra que seja ainda me enterre mais embora não saiba de que sou culpado mas que sinto que sou, sou. Choras, falas ao mesmo tempo, a voz soa distorcida e não percebo o que dizes mas não arrisco a pedir para repetires. Dou-te um lenço, quase me arrancas a mão, dizes spm, estou a zeros, não percebo, será um código, uma sigla, o morse, isto é mesmo dificil, sais disparada e bates com a porta. É aí que a noite começa a entrar na minha sala e conforme a luz se vai assim percebo claramente o teu ciclo.
Que é isto? Esboços, ensaios, trabalho, vá lá diz a verdade, sou eu não é? Não, não és, sou sim porque não dizes, e não o digo porque não és mesmo tu, é trabalho, mas insistes nessa teoria de que te desenhei e embora já tenha dito que não parece que não acreditas. Mas amuas, amuas mesmo, encaixas-te no canto do sofá a dar à perna e veladamente vais tricotando criticas ao meu trabalho, coisa menor, quem faz bonecos não se pode dizer que seja trabalho, nem te digo nada, sei bem que esperas que me defenda mas isso é o que tu queres, arranjar pé para me atacares só porque o esboço não é de ti. Só me faltava isto, ciúmes do trabalho, ou usando as tuas palavras dos desenhos animados e até já sei o que vem por aí, se não és tu quem é e qualquer coisa que eu diga há-de ser sempre o contrário. Hoje deu-te para isto e não há nada a fazer. Como é que alguém pode ser tão diferente de um dia para o outro, tenho algumas dificuldades em lembrar-me de ti ontem e ver-te hoje a vulgarizares o entardecer...
Uma imagem vale por mil palavras e ontem valeu por todas as inventadas e ainda mais aquela que me deixa os nervos em franja e que felizmente nem afloraste. Ainda bem, porque ontem foi tudo perfeito e era uma pena se viesses com a conversa do costume. Bom, perfeito perfeito... lá se foi o trabalho e hoje vou ter de trabalhar por três dias mas que se lixe, ontem foste uma mulher fantástica, dominaste completamente o meu estirador, arrumaste os desenhos animados num chinelo e conseguiste uma luz que nunca te tinha visto, estavas linda, linda e perigosamente sedutora e envolvente. Não há palavras que consagrem em justiça a imagem de uma mulher ao entardecer, a tua imagem sob o meu corpo, as tuas expressões, o húmido da boca, tudo. És fabulosa, ainda bem que to disse. E agora ao trabalho. Se conseguir concentrar-me...
Dormi mal, preocupa-me o atraso dos projectos, aliás acordei várias vezes ao longo da noite e para além do trabalho também tu ocupaste uma parte considerável da minha atenção, não pelas mesmas razões mas directamente consequência da minha ralação. Hoje virás de novo e tentarás distraír-me do estirador, não consegues entender que isto é serviço e lá porque me vês trabalhar em casa ficas a achar que não passa de um entretenimento, uns bonecos para eu me ocupar como um passatempo enquanto tu sim, no duro, das nove às cinco a aguentar a inveja de umas gajas que se vestem mal e te copiam. Nem vou argumentar claro, tempo perdido. É engraçado é que é sempre nestas alturas que te dá a tesão, insinuas-te, interpões-te nos desenhos animados e o meu peito, abres a blusa devagarinho com um sorriso malicioso e eu acabo por mandar às urtigas os prazos. Devía usar da mesmíssima frase com que me costumas castigar, só pensas nisso... São as metamorfoses e ainda é madrugada.
Não convinha nada que aparecesses, estou cheio de coisas para fazer que já devíam ter sido terminadas e entregues, um dia bastava e despachava isto, uma tarde, só peço uma tarde comigo e os desenhos animados como tu lhes chamas quando olhas para o estirador. Mas é certo que hoje apareces, deves querer arrastar-me para qualquer sitio, a conversa de ontem foi o banho-maria, tu achas que eu não percebo e eu até permito que assim seja, pelo menos evitam-se os amuos e o discurso de dedo apontado de véspera, já bem basta o que acontecerá inevitavelmente hoje quando eu disser que para mim não dá para andar em saídas que estou atolado de prazos para cumprir, e nem te chego a dizer que o ideal sería não apareceres, se o dissesse era o bom e o bonito. Desatavas a competir com os desenhos animados ou com o entardecer. Nunca irás compreender o que se passa comigo antes de anoitecer... E eu sou incapaz de to explicar. É o meu segredo assim como também tu os terás. Pronto, ouço-te os saltos a picarem a escada. Aí vens tu.
Sabes que dia é hoje? ía responder sexta-feira ou não sei mas não disse nada, que é que me escapou, e se não me lembrar rapidamente vou ser crucificado e aí sim, terei razões para me lembrar que dia é este que não me diz nada em especial. Mas como fiquei calado deves ter lido na minha cara que estou à toa o que para ti é o equivalente a um parece impossível, tu não ligas a nada, para ti nada é importante. Claro que é, mas hoje não estou mesmo a ver o que seja particularmente importante e a verdade é que quanto mais puxo pela cabeça mais perdido fico. É imperdoável, isto só significa a importância que nos dás, nem te lembras que estamos juntos faz hoje seis meses, meio ano, olha que quer dizer alguma coisa não achas? Claro que quer dizer mas datas nunca foram o meu forte e se é isso que se comemora que tal enroscarmo-nos, mas fico calado, tento aconchegar-te ao meu peito e acarinhar-te o cabelo e tu esquiva rematas com um só pensas nisso. É nestas pequenas grandiosas coisas que a noite se destaca, está cá sempre e sempre para ser lembrada . É a noite. É a noite e está tudo dito.
Aí vens tu rua acima, os saltos a cravarem-se entre as pedras da calçada e o aceno para mim até ao parapeito onde me encosto. Vou deixar que subas e batas à porta, perguntas se não te vi lá em baixo a dizeres adeus, eu digo que não mas claro que perco a inocência quando esticas o beiço, rio e chamas-me parvo, beijo-te e por momentos o silêncio. Depois a janela aberta deixa entrar as vozes da rua e tu muito decidida fazes da minha sala o teu púlpito e corres com esses sons invasores. Do tema dos últimos dias nem sombra, acho fantástica esta tua capacidade de fazer de conta que estas variações com que apareces não existem, falas do tempo, da chuva e do calor, fechas a janela para que eu não me perca da tua conversa mas sinceramente pouco me entra do que dizes, estou mais ocupado a observar-te hoje e a comparar-te com o ontem. És muito mais parecida com o caír do dia do que possas imaginar.
Traçaste a perna e abanaste o pé enquanto me ías dizendo que o grande problema da nossa relação é eu ter medo de assumir compromissos. Lá voltamos nós ao mesmo, mas hoje não há disposição para isto, regressas para me dizer que eu tenho medo? Não te respondo, dou-te a corda toda, vais cansar-te, isto é ciclico já sei, depois esqueces e daqui a uns tempos de novo a mesma ladainha, só que eu começo a ficar saturado de saber o que me espera, não basta viver o que temos e gozar o melhor possível? Falas, falas, falas tanto que deixo de te ouvir e começo a pensar noutras coisas para além de ti e de mim, desta sala, vou lá para fora, penduro-me nos candeeiros e observo a rua deste ponto critico em que se me deixar caír a perspectiva da minha vista será outra, será que subo aos céus? Abraças-me, volto à sala, a ti e a mim, nem me apercebi que já te tinhas calado, entro em ti no canto do sofá onde te aconchegaste e traçaste a perna e é exactamente quando me venho que solto a mão do candeeiro onde me pendurei e fico a saber que a perspectiva que ganho é a noite que chega.
Deu-te mesmo forte, tu lá sabes mas eu também sei o que gostas destes joguinhos, deves estar à espera que eu vá à tua procura e te chame, pelo menos que te telefone com a voz meio enrolada de preocupação. Não estou preocupado, simplesmente não tenho espaço para este tipo de coisas nem tão pouco vontade para as alimentar, daqui a nada apareces aí com uma novidade qualquer, é mais forte do que tu, tens necessidade de te fazer ouvir, tipo prestares declarações, fazeres finca-pé no teu ponto de vista. Aliás, nós os dois sabemos bem que se isto é para acabar não acaba sem tu encheres a minha sala do rosário das coisas que já passaram, tu não és mulher para te ires embora sem avisares primeiro que te vais embora e de dedo esticado hás-de condenar-me, isto é tudo por culpa minha. É capaz. Até da noite o sou, quanto mais...
Que raio! Hoje que não quero pensar em ti não me sais da cabeça, ele é a tua voz, o teu cabelo nas duas versões morena e loura, a tua púbis, os teus saltos a acompanharem as gargalhadas que dás e eu com tanto que fazer e a precisar de me concentrar e tu para aqui às voltas da minha atenção. Há coisas que não têm mesmo explicação: Tantas vezes já perdi o fio da tua conversa quando estás aqui na minha sala e hoje, que é mais um dia que não apareces não fazes outra coisa se não atentares-me o juízo. Parece castigo, se eu acreditasse nessas lérias. Já dei comigo a ver o estirador a afastar-se e tu a fazeres dele cama, só tesão, claro que tu explicarías o facto com a cena das saudades mas eu não vou por aí. Isto passa, quando acenderem os candeeiros na rua já terá passado.
Vens um dia no outro fazes birra e hoje nem um alô. Tanto melhor, escusam-se os silêncios forçados da minha parte perante as verdades forçadas da tua. Fiquei a pensar no teu convite e neste momento já não tem tanto de surpreendente como quando o disseste, ele há coisas que sabemos mas parece que só se objectivam quando as ouvimos por outra boca que não a nossa, aquelas das manhãs na casa de banho ao espelho em que se mastiga um rol de idiotices e sentimos um alivio caustico pelo segredo dos pensamentos. O teu convite é uma dependência e eu não sou capaz de ser assim sabes bem e fico apreensivo por te saber com essa necessidade. Fizeste bem em não aparecer nem telefonar, se calhar nem voltas mais, não ía aguentar uma cena de choro e ranho, já tenho a noite para viver em função do entardecer e eu a cargo delas.
Entras sinuosa, nem um beijo, ainda a porta não está fechada já estás a dizer que assim não dá, assim como apetece-me retorquir, contigo a vir um dia e depois contrariada a achares que a tua ausência é o castigo que mereço, mas guardo para mim a pergunta e espero que me elucides embora suspeite que mais uma vez lá vamos nós caír naquele assunto com aquela palavra. Está a começar a tornar-se repetitivo... O que é que eu quero desta relação, mas tenho de responder sinceramente sublinhas, ora aqui é que está a questão, mais sincero é impossível e parece que é essa mesma sinceridade que está a atrapalhar tudo. Vem viver comigo, deixa isto, há espaço suficiente para os dois e tudo sería diferente, tive de me levantar, acho que este é o melhor gesto para te demonstrar que se queres que faça parte da tua casa, isto como tu lhe chamas e isto é a minha casa, terá sido uma mentira incluíndo tu, nós. Confesso que por esta não esperava. Só pelo momento da surpresa apetece-me beijar-te, abraçar-te e depois beijar-te outra e muitas vezes mas tu viras a cara para o lado e sais, bates com a porta, ouço-te os saltos na escada, na rua até o som de martelinhos desaparecer. Não esperava, mas gostava que hoje tivesses ficado comigo debruçada no parapeito até a noite aparecer.
Ligas, desculpas-te com uma dor de cabeça terrível, terrível e insistes no adjectivo para reforçares a mentira. Não é preciso nada disso, gostei do telefonema dispenso a mentira, estás a ver porque é que eu dispenso conversas a sério? Acaba-se por dizer qualquer coisa que não corresponde à verdade empolgados pelo momento e se falassemos sobre o que queres inevitavelmente dir-me-ías coisas lindas e um bocadinho exageradas pela emoção, até as juras viríam à baila e isso não, juras é que não, alguém tem que ter a cabeça no lugar. Se não queres aparecer não venhas e se achas que falar daquele assunto com a palavra proibida é condição para apareceres então digo-te eu, e agora a sério, isto é mesmo um adeus. A noite acaba por me exigir tanto e tu ainda queres mais.
Não apareceste, amuaste. São estas pequenas coisas que me fazem lembrar a tua idade, achas que me castigas por não aparecer mas a verdade é que isto diverte-me. Este tipo de previsibilidade dá-me gozo, sei de antemão como vais reagir, nem te ocorre que eu já estive aí nessa tua idade e que embora sendo homem há coisas tipicas que temos mesmo de fazer porque são da idade e não têm nada a ver com o facto de se ser homem ou mulher. Quando chegares aqui vais perceber e muito provavelmente se tiveres com alguém de outra geração também te vai dar gozo. Não te vou dizer nada disto, tens que passar por esta fase, é mesmo assim e por outro lado iría parecer que te estava a dar um sermão de pai para filha. Bom... Quase. Amanhã ou depois lá chegas tu, as castanholas dos saltos na escada e mesmo antes de bateres à porta compões o boneco da ofendida, eu faço de conta que não percebo nada e deixo-te vazar o que já trazes ensaiado. Nestas alturas ficas especialmente atraente e de olhar picante, o que dizes muito séria não combina nada com o sinalinho atrevido que tens no queixo. Tu nem sonhas mas consegues mais de mim nestes instantes do que dias a fio de burro amarrado. É como te digo, é a noite depois do entardecer.
Temos que conversar dizes tu, só espero que não seja aquilo, tu sabes o que é aquilo mas não digo nada, só te olho à espera que passe esta sensação de déjà vu e que o alivio me ponha à vontade outra vez. Temos mesmo de conversar... a sério. É aqui que fico mais aflito. Conversar. Não podemos estar como estamos? está tudo tão bem, o sexo é magnifico e até aquele episódio da tua estadia acabou por ser uma experiência de registo, que mais queres, estragar o que é perfeito? Calo-me claro, se te dissesse isto quase aposto que choravas, o rosário das frases convencionadas como não sou só um corpo nem a tua puta de serviço, podemos ainda estar melhor ou no apogeu, que queres de mim, não pensas em nós, seríam a legenda da tarde. Mas o que me preocupa mesmo nem é tanto o temos de conversar, é esse intervalo parado e abissal do a sério depois das reticências. Se trocassemos de posições sería a minha vez de te deixar aflita e encostar-te à parede com um mas nós não somos a sério? Palavra que não sei se isto é uma metamorfose se um suicídio.
Silêncio. Não se ouve nada. Agora que saíste deixaste o silêncio. Mas é um silêncio estranho pois também não consigo ouvir os ruídos da rua, buzinas, os vizinhos a falarem, esses barulhos que me acompanham pela manhã. É certo que a esta hora não costumas estar aqui nem nunca fizeste parte do meu começo de dia, mas tanto silêncio... Parece que levaste tudo, não foi só o corpo, a conversa agitada logo que acordaste, os saltos a precipitarem-se escada abaixo, foi mesmo tudo, uma espécie de cenário que se arranca quando a temporada acabou. Já abri e fechei a janela, voltei a abri-la e a fechar à espera de ver a diferença do som, dos sons. Mas nada. Só tenho nesta sala tu e o silêncio. Tu e o silêncio.Vou esperar pelo entardecer, aquele fundo mesmo antes da noite tingir estas paredes. Aí volta tudo ao normal.
Não sei bem como tapamo-nos com a noite e ficaste cá em casa. Não sei como foi isto acontecer e acho que tu também não, nunca o evitámos mas sabemos bem que isto pode ser o principio de algum fim. Não que me tenha sentido mal, aliás foi uma janela que se abriu, ver-te deitada a ocupar a minha almofada e os meus receios em ressonar e acordar-te ou rolar e esmagar-te sob o meu corpo, és tão diferente quando dormes... Sabes, quase senti que tinha outra mulher na minha cama e que esta era uma maneira torcida de ter um affaire sem saberes. Não te vou dizer isto, claro, então é que era mesmo o fim, logo agora que descubro outra para além de ti. Mas que foi estranho foi. Dobrar o anoitecer com uma mulher jovem e fazer a madrugada com outra da minha idade, especialmente quando são a mesma a usar a escova de dentes pela manhã é coisa que não estava à espera.
Já vinhas com ela fisgada, deves ter desenhado o plano todo antes do ataque para chegares preparada para as surpresas e assim que fechei a porta selaste todos os meus movimentos pela tenaz que me encaixaste no meio das tuas pernas. Primeiro não me apercebi mas à medida que me ías devorando a golpes de anca e insistías na pergunta comecei a estranhar... Na verdade nem sei bem o que é que me perguntaste mas deve ter sido a pergunta do costume, a minha atenção estava em ti, gosto de ver o teu brilho e de te ver corada e depois muito arrepiada. Só quando tapei a tua boca e senti a ponta da lingua na minha palma é que te deves ter satisfeito na resposta que não houve, vieste-te, este é também o momento glorioso e egoísta em que sou só eu e nada mais. Será preciso mais eloquência?
Não quero conversa, não quero barulho, também tenho os meus humores, só quero sentir-te, por fora e por dentro, descobrir outros sinais que ainda não tenha visto ou alguma reacção que me deixe intrigado como um rasto até amanhã ou até um dia esse relampago se volte a electrizar na minha cabeça e me faça sentir tesão só de te lembrar. É isso mesmo, hoje é dia de corpo. Sem roupa na pele e sem roupa na alma. Só espero que não me venhas com aquele assunto, aquela palavra, estragavas tudo, íamos discutir, por isso deixa que te sirva o meu corpo, façamos um festim. Deste tantas vezes se ornamenta a alma, essa, a que despimos. É a noite pois, a noite que se estende macia para nos deitarmos.
Allegro, o compasso dos teus saltos denuncia, é o feriado arrematas à entrada, nada como um dia a menos nos dias da semana, vais desenrolando noções práticas sobre como passar um feriado, faltam mais uns graus e a praia para ganhar uma cor. Mais? Mais o quê, não páras para seguir o meu raciocinio, a verdade é que este rubor é-te desde sempre, já nasceste nele e não o conheces sem ser dia de folga, presunção e esquecimento meus que por vezes acerto os nossos relógios biológicos e acho que nos encontramos a meio caminho. Mas não, essa folga preenchemo-la na horizontal ou doutras vezes na fome a parede ampara costas e pernas. Cantas baixinho a Internacional, pergunto de onde trazes essa música, sabes lá tu, ouviste na rua a caminho daqui e entrou-te na cabeça, essas coisas parvas que acontecem sem se dar conta. Daqui a nada o entardecer há-de fechar a minha janela e esta sala como uma caixa guardará os sons que agora desperdiças na ponta dos lábios.