ANTES QUE A NOITE CHEGUE

(SOLILÓQUIOS E METAMORFOSES)
Hoje vieste mesmo, fiquei a olhar-te e a pensar no que sucedeu ontem com a partida que a minha cabeça me fez. Parecías tu a chegar mas nem eras nem chegaste, uma sensação caleidoscópica em que dificilmente se percebe o que são contas de vidro e reflexos nos espelhos. Perguntas porque te olho desta maneira, por nada, adiantava alguma coisa eu explicar mas enquanto estou nestas divagações sobre o digo-não-digo já tu estás noutra, não apanho o fio da conversa, distraído, és muito distraído. Nem tanto, se soubesses que o motivo és tu então tería conversa até ao final do ano e tudo isto que me está a surpreender enquanto não o entendo passaría a ser uma banalização. Perdi-me, tento apanhar-te, tu hoje vens ousada e por dentro dos meus bolsos sinto as tuas mãos à procura de mim. Esqueço tudo. Até a noite chegar ainda vai demorar um bocado.
Senti-te os saltos na subida da escada, depois um silêncio súbito, fiquei à espera de mais sons mas nada, achei que me tinha enganado só porque está na hora de chegares. Abri a porta, talvez mais uma das tuas partidas, mas também não, ninguém. Não sei porquê mas fiquei incomodado, primeiro porque te ouvi quando não estás e depois pela causa que dei ao facto de achar que eras tu que lá vinhas. É perturbador contar como certo que virás e até reproduzir os sons que são teus como meus para meu conforto e desculpa. Fiquei ainda à espera que a qualquer instante chegasses mesmo e apagasses esta sensação que me deixou no peito. Porque havería eu de esperar por ti e logo hoje? Com o final do dia a ir-se de manso esqueci estas dúvidas filosóficas e rápido as cores da noite inundaram a tua imagem pensada.
Já reparaste que os candeeiros se acendem mais tarde, mas só o penso nem vale a pena dizê-lo, provavelmente sería atropelado na tua conversa, vens para pôr a escrita em dia e hoje estás imparável, até a ti própria tropeças e esqueces e retomas o que já falaste, nem te ouves. Aos poucos é só ruído que chega, a boca a movimentar-se elástica, a mão a cada final de frase a compôr o cabelo muito liso no seu lugar. Olho lá para fora e nesse mesmo instante sacodes-me, sorrio-te, de que é que te ris? de nada, estás a ficar doido, pois estou, essa tua conversa põe-me doido, não faço um esforço para o dizer e tu segues sempre. Lembro-me de uma lampada fluorescente com o arrancador cansado.
Há uma serenidade enorme no começo da semana, não sei se te fartas de mim e te dás essa pausa mas eu sinto e não te digo, este intervalo é um alivio quase visceral, quase faminto. Parece que preciso de te ter em falta, não que pense em ti neste dia de forma especial ou diga para mim que não vens quando o entardecer se recolhe em absoluto e se cheira a aproximação da noite, é mais daquele fosso que me atrai e me afasta de ti. Às vezes cansas-me. Chego mesmo a ficar farto, saturado de tudo o que vem de ti. Mas depois, inexplicavelmente, parece ser esse o maior dom que fascina: o saber como és, o verde das emoções, o descontrole da fala, o acalmar da lava quando entro em ti. Às vezes farto-me de mim mesmo mas ainda bem que não o sabes. Estas coisas são tão intimas que só as digo à noite, essa morre e no dia seguinte outra será.
De ontem nem um pio, restam as pétalas serrilhadas com que te ocupaste no tempo a arrancar, sangram entre os borbotos do tapete, o pé partido pelos minutos que duraram a tua distracção. Nestas alturas penso no fosso que nos separa e nos aproxima, não consigo achar respostas, olho-te e procuro-as, tu olhas-me e perguntas-me o que acho. Sobre o quê? Aborreces-te, sai disparada a acusação de que não te ouço, que assim é impossível, o quê? Mais impossível do que nós é impossível e cá estamos, de alguma maneira lá nos arranjamos e fazemos a ponte para nos encontrarmos. A seguir vais amuar, depois esperas que eu tenha o gesto idêntico a um pedido de desculpas, encostas a cabeça ao meu peito, elevas-te no bico dos pés, o sermão nas palavras pequeninas, o biquinho a apetecer ser sugado, dás ao corpo curtos movimentos de lá para cá, as pétalas espetadas nos saltos, é isto tudo que há-de acontecer exactamente por esta ordem. Surpresas só quando o dia sangrar até se esvaír na noite.
Entras lampeira de cravo rubro na mão, repenicas-me um beijo e encostas a barriga à minha janela. Vens para ver as modas, que modas pergunto eu, as pessoas de lenço vermelho e de cravo vermelho, estas todas que parece que não param de nascer e descer a rua, velhos, tantos velhos, velhos como eu digo-te e tu respondes que não é a mesma coisa. Não é por quê? Porque dormimos juntos? Repetes que não é o mesmo, é tudo uma questão de atitude e vais abanando o cravo como se fosse uma bandeirinha em dia de corso, olho para ti e lembras-me outros desfiles de janelas engalanadas que se deitam ao passar de um outro que já se finou. Isto é demais, à minha janela não, queres brincar vais para outro lado. Fecho a janela, só a volto a abrir para a noite entrar.
Perguntas-me por cravos, depois dizes que é urgente termos cravos por estes dias e todos vermelhos, nada de rosas ou raiados mas absolutamente vermelhos. Não percebo de onde saiu essa idéia floral, sorrio e tu replicas que não és tonta mas serei eu um alienado que não lembro de datas importantes. Falas-me da revolução dos cravos, rio, rio muito, ainda nem sequer tinhas nascido, ficas vermelha de raiva, sabes o que aconteceu, aprendeste. Desta vez não me calo, isso é coisa de noite e de dia, uma absorção lenta, um estado de alma, pode saber-se dos factos não se pode sentir o gosto sem o ter provado. Insistes. Hei-de fazer-te a vontade, espera e verás como é o vermelho quando a noite chega.
Ainda não tinha fechado a porta e já vinhas de aviso em punho, hoje não há nada para ninguém, pergunto-me o que será nada, mas nem verbalizo pois sei de antemão que esse nada é sexo e se nada é igual a sexo para ti vamos discutir porque para mim sexo é tudo. Não é sexo pelo tudo, é sexo-tudo como pão é tudo, como arte é tudo, como respirar é tudo. Atiras-te para o sofá com um relato de alguma coisa que parece ter muita importância só porque achas que assim me desvias a atenção sobre sexo. Ouço-te com a mesma importância que atribuis ao sexo, refilas que não te presto atenção. Acho que merecías que te respondesse que hoje não há atenção para ninguém mas não é verdade, foco-me nas tuas expressões e lembras-me um prisma de luz. Cada vez mais parecida com o facetado da noite que não tarda chega.
Trazes um discurso estudado e muito bem ensaiado, claro que resulta porque sabes que te ouço sem abrir a boca e assim podes alegar e retorquir a teu bel-prazer. Ficas encantadora nestes raros momentos de seriedade. Mas estragas o boneco quando vais buscar aquela palavra e me perguntas se é verdade, o que é que eu sinto por ti, se te quero para sempre, sei lá se te quero para sempre, agora quero e não importa o raio dessa palavra que tanto enrolas na lingua, vem cá que eu mostro-te o quanto quero de ti e de mim, não é isso que importa? Encosto-te na parede e amarinho pelas tuas pernas, sinto o sabor da tua pele e a pele a arrepiar-se, não, não vou dizer a palavra, desculpa se para ti ser romântico é só dizer a palavra. Começo a achar que essa maldita palavra é um botão para ligar e desligar o que sentes por mim. Não digo, vais embora furiosa e de blusa desabotoada. Também a noite se desabotoa e o dia foi dormir.
Que surpresa ver-te de novo morena. Mas fiquei desapontado quando referiste o gesto numa homenagem a mim, que o louro tinha sido para me agradar e já que não me tinha manifestado regressas às origens. Não sei se te hei-de dizer que deves homenagear a ti mesma porque se calhar vais achar-me ingrato, ou apenas interessado no teu corpo, ou sem opinião formada sobre nada. Calo-me. Pelo menos fica ao teu critério a acusação que me hás-de apontar. Dás-me a sensação que vives em função do que acho e como poucas vezes digo o que acho começo a ter sérias dúvidas sobre a tua existência. Ou será que é a noite que me faz isto tudo?
Certamente contra a tua natureza manteres esse estado de graça suave e silencioso só para me agradares, eu não o faço não tens de o fazer. Certamente contra a minha natureza desatar a falar de tudo e de nada assemelhando-me a ti, estranharías e eu não conseguiría aguentar essa figura por muito tempo. É um cansaço tremendo sermos para os outros de quem gostamos aquilo que esperam que sejamos. Pela minha parte prefiro-te tagarela, mesmo com a eminência de te desejar longe quando passas as marcas, mas és tu, o original. Se queres saber, por vezes acho-te piada nessa barulheira, é o sinal que antecede o dia a fechar-se.
A forma como me apertaste contra ti valeu por todas as falas que calaste. Afinal também tu sabes ser eloquente, não percebo porque o escondes, te fazes numa fina camada de pele muito superficial capaz de se romper a qualquer instante. Não falámos, não nos deitámos, tomámos um chocolate quente enquanto ficaste a meu lado a passar os dedos nos esboços que expandi no meu estirador. Não te desenho mas risco a noite a chegar e o dia a esmorecer.
Parece que ainda não ficou tudo dito, resolves condensar na minha sala meses da nossa existência, a separado, a pares e condenado sem audição de todos, não tenho vez para falar, também não peço, agora choras, não percebo, não me consigo recordar de onde veio esta onda poluída que me suja os sofás, a janela, o estirador, as vezes em que nos quisemos ter. Esperas que te diga alguma coisa melodramática e muito cinéfila mas não há tempo para isso, daqui a instantes a noite vem tomar o que é seu e tu a fazeres-me perder tempo. Concordo contigo, não me faz diferença.
Não dei por chegares perto, assustei-me com o som da campainha. Regressas ameaçadora, a última vez, que não estás para isto, eu também não, desatas a falar de amor e eu arrepio-me, de onde veio essa palavra, a palavra, por momentos tive vontade de te agarrar para te tirar a roupa e entrar em ti mas logo que ouvi tu a dizeres a palavra perdi o encanto, a tesão e achei que era demais ter uma estranha a encher-me a sala de frases feitas e imposições modeladas em advérbios de quantidade. Queres ir vai e leva o telemóvel, a noite está para chegar e tu não me conheces.
Gosto desta quietude, tudo para mim, nada partilhado com mais ninguém, posso fazer o que quero e pensar o que quero sem responder a outros estímulos para além dos que são dirigidos ao ao meu corpo e ao meu espirito, não tenho que te responder nem formular opiniões que depois tenho que defender porque são as opostas das tuas. Habituo-me à tua falta. Não me custa, devería custar porque gosto de ti e de nós os dois juntos, mas não me dói sobremaneira que me leve a desenhar-te de cor ou a dispor dos meus pensamentos quanto ao som do teu riso ou a fechar os olhos para melhor me lembrar da tua púbis que se mantém igual à tua natureza morena. É a noite, é a noite nesta sala que queres?!
Deu-te forte, nem o telemóvel serve de desculpa para vires cá. Para mim também serve de desculpa para não te procurar, já pensaste nisso? Deves estar demasiado ocupada a exibir o teu cabelo louro por aí e a receber babadinhos os clichés que os gajos te oferecem. Não tenho ciúmes sabes bem, essa coisa de ciúmes é coisa de coisa com dono. É por isso que voltas sempre, mais ninguém te faz sentir isto. Ser e não ser, entregar sem pertencer. Sei que te irrita não te fazer perguntas mas sabe-te bem desapareceres quando te dá na gana sem nenhuma explicação. Depois apareces a fazer o velho número da ofendida. Eu deixo. Nessas alturas se soubesses como ficas parecida com o aproximar da noite...
Sabía de antemão que não vinhas, ontem quando saíste já o sabía, acho que não te elogiei a coragem que precisaste para te tornares loura. Estás ressentida. Quando vieres será numa de amuo, poupadinha nas palavras, achas que não mereço as tuas tralhas, as tuas conversas, fico calado, tu pensas que é por teres razão que não me defendo e te respondo, simplesmente não me apetece. Nestas alturas pergunto o que faço aqui na minha própria casa e acho-me uma visita na tua casa. Hás-de entrar e saír, sem fazer barulho depois de teres batido violentamente com a porta, como se esse som fosse o único digno de eu poder ouvir de ti. Mal sabes tu que anseio que te vás... não tarda a noite há-de entrar de mansinho.
Lá vens tu, uma correría a subir as escadas, os saltos a martelarem os degraus, hoje abro-te a porta antes de bateres ou tocares a campainha. Apareces loura, rubia, dourada, sei lá, um aspecto diferente com sons que conheço. Rodas pela sala e vais perguntando enquanto giras o que acho, acho-te loura, ris-te, achas que é uma piada minha, insistes, acabou-se-me a inspiração, já vi que estás loura podemos conversar, tomar um chá de menta, apalparmo-nos? Parece que não, hoje o assunto é o teu cabelo novo e descreves como me vais seduzir fatalmente.
Espero para ver a tua púbis.
Ignoro a tua conversa, pago-te na mesma moeda. Vou gemendo hum, hum, sinal de que estou vivo mas quero que percebas que nada do que digas pode ter importância. Na verdade, estou a tentar não te ouvir propositadamente e hoje que me esforço para não te ouvir estou a conseguir reter todas as cretinices que vazas como um dique em fuga. Quero que entendas que te ignoro, sarcasticamente, que não te perdoo a banalização em que transformaste o meu entusiasmo pela exposição de pintura. Mas vais mais além: Ignoras que eu te ignoro. Bates com a porta. Esqueceste o telemóvel entalado nas almofadas do sofá. Quase de certeza que foi intencional, só para eu não te ligar.
Falei-te da exposição, dos quadros, das perspectivas, da minha intenção de não a perder, da minha vontade em estares ao meu lado, vermos as mesmas cores, as mesmas formas. Acenaste afirmativamente com a cabeça, a franja pendurada sobre o sobrolho, sopraste para a afastar e deste-me a certeza nesse instante que não era programa que te apetecesse. Apenas não o disseste, adiaste para o dia, hás-de arranjar alguma desculpa, um precalço ou um atraso que te evite naquele sitio. Não percebo porque estamos juntos. Nada nos liga. Só o sexo no sexo. E a falta que tenho de ti. Também a deves ter de mim ou não voltarías todos os dias.
Esqueço-me de ti facilmente, não é por seres tu, qualquer um, desde que chegue aquela altura em que não é dia mais e ainda não é noite perco tudo, todas as caras conhecidas, os gestos, os nomes. É uma espécie de hipnose. Ou um acto maior que as pessoas, nascer e morrer todos os dias, poder assistir a essa entrega e ressuscitar... Não sei. Sei que se falasse disto contigo não perceberías, talvez achasses que era uma desculpa esfarrapada para acabarmos ou uma amante nova a caminho. Não sei. Mas sei que gostava que partilhasses deste sentir. Faz-me sentir só não me lembrar de ti nem de mais ninguém.
Chegaste, sempre cheia de pressa, a dizeres que não te podías demorar, depois da excitação da entrada, eu mãos nos bolsos a acenar leve com a cabeça, abraçei-te, beijos, chupões, carne sentida nas mãos, o coração a bombear sangue para onde deve e deitámo-nos sobre o tapete de tear. Queixaste-te dos pequenos altinhos que te fazíam doer as costas, rodei, fiquei por baixo, senti-me penetrar-te como se me penetrasses. Lentamente, o tempo apressado esquecido por completo. Mas neste momento em que dormes, as mãos encaixadas entre as pernas recolhidas faço amor com a linha do teu corpo contra a luz que se esvai aos poucos. Daqui a nada a noite.
Há dias em que se ficassemos os dois calados mais e melhor falaríamos. Eu dispensava as tuas trivialidades e tu deixavas de me crucificar por ser tão pouco efusivo. Ficavamos com os sorrisos, as piscadelas de olhos, um leve pigarrear, as mãos. Se quisesses podías assistir comigo da minha janela à chegada da noite. Já sei que não achas graça nenhuma, a noite para ti é dormir, lantejoulas, shots... Mas eu falo da noite a chegar. Aí verias que não me conheces.
Ouvi-te o picar dos saltos na escada, sei que vens bem, vens animada, só pelo som da subida sei como chegas, lembro-me de castanholas e de sevilhanas não sei porquê. Bates na porta em vez de tocares a campainha e de uma forma ritmada que pareces estar a transmitir em Morse. Para mim é igual, não sei Morse e depois já te tinha ouvido a subir as escadas o que para mim é o suficiente para saber dos teus humores. Engraçado é que quando chegas assim é quando eu estou mais introspectivo, não faço de propósito, calha, mas tenho quase a certeza que vamos acabar a discutir por causa disto.
Nada. Sinal de ti apenas na minha memória e na escova de dentes que tens cá em casa. De resto, nada. Se te foste acho bem que o tenhas feito desta maneira. Longas explicações atraem longas verdades e longas mentiras e longas acusações. Não estou para isso, devemos os momentos mágicos que tivémos ao mutismo, sem a lógica dos pagamentos do gostar mais ou gostar menos. Somos livres, não devemos ser de ninguém, muito menos de alienadas correntes que nos atiram num horário pre-estabelecido para os braços um do outro. Devemo-nos isso. Talvez não venhas mais. Tenho pena. Não é pena mas é pena que não durasse. Pelo menos fomos um para o outro o que a noite é para o dia. Precisados.
Se me tivesses dito que não querías estar comigo eu entendía. Ao invés de me dizeres a verdade encheste-me piedosamente de desculpas. Eu não disse nada, desliguei o telefone com a cabeça cheia do dia de ontem. Acho que estás com vergonha de aceitar o prazer que tivémos. Procuro dentro de mim aquela palavra, talvez assim me justifique, e a ti também e à tua vergonha, mas não sou capaz. Gostava que tivesses vindo. Mesmo sem vontade. Sinto a tua falta. Deve ser da noite que vem aí... digo-o e repito-o mas não me convenço.
Vinhas zangada lá de fora, nem cheguei a perceber com o quê, com quem, mas aproveitaste o meu silêncio para te vazares em culpas apontadas na ponta do dedo a mim. Fiz o que me apeteceu: suguei-te o indicador. Ficaste furiosa por não te levar a sério. Eu levei, mas ver-te tão próximo do descontrole ainda me deu mais tesão. Parecías uma fera de saltos altos. Domar-te, deitar-te, afastar-te as pernas e sorver longamente todos os poros da tua pele foi uma obssessão que me apanhou naquele instante e se primeiro te debateste logo que sentiste a minha lingua quente aceitaste a novidade da raiva como um novo prazer. Foi a primeira vez que nos tivémos assim, animais à procura do gozo.
Não sei bem o que sinto por ti. Já dei comigo a ausentar-me na tua presença, uma saturação pelo som da tua voz e dos teus gestos sempre tão enérgicos e determinados. Doutras vezes, quando te atrasas sinto a falta de tudo isto. Chego mesmo nessas alturas a achar que me deixaste de vez e não estás para me aguentar nas minhas frequentes variações de humor. Eu não sou determinado como tu, sabes bem, estou contigo porque gosto de ti. Sim, gostar eu sei que gosto de ti e muito. Agora aquilo... não sei. Acho que penso muito nessa palavra quando a noite se aproxima e pergunto-me se alguma vez irei sentir isso. Se isso é verdadeiro. Não te posso dizer isto. Por não entenderes não to posso dizer, perder-te-ía nesse segundo.
Mal chegaste tiraste a roupa e desfilaste o corpo pelos meus olhos. Como não me mexi vieste até mim, tiraste-me os óculos e sentaste-te ao meu colo, uma amazona dos tempos modernos que quando quer demonstra-o sem pudor. Não digo que desgoste, mas sabe-me bem aquele jogo em que te vou tirando peças de roupa à medida dos beijos dados e da crescente loucura. Hoje vinhas faminta, senti o teu cheiro mal entraste e desconfiei porque não chegaste a falar pelos cotovelos como é teu hábito. Aquelas conversas infinitas em que saltitas de assunto em assunto. Hoje o tema sou eu. Queres comer-me.
Deixa-me dizer-te que não é fácil, chegas com esse ar amuado à espera que eu me desfaça em desculpas e eu calado, mudo sem saber o que te dizer porque no fundo não fiz nada e em tom critico ainda levo o troco de ser isso mesmo, nada ter feito, acabamos assim, tu a ires embora eu com um sentimento de culpa sem saber a razão, e a achar que amanhã quando voltares ponho tudo em pratos limpos. Só tens que chegar antes da noite chegar. Se chegares depois dela será tarde, terei voltado as costas a tudo o que possa parecer importante, deixarei à mesma esse arzinho de amuo inchar até sentires que o ridiculo é seres só tu, eu já terei ido. É a noite, que queres...